sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

3724) O fair-play do mistério (30.1.2015)



(O "cuidado, leitor" em The Roman Hat Mystery, 1930, virou depois "Desafio ao leitor")

Alguns amigos estavam conversando sobre o filme Os Suspeitos, de Bryan Singer, aquele sobre uma quadrilha de delinquentes envolvidos com as maquinações de um gênio-do-mal, Keyser Soze, uma espécie de Fu Manchu ou de Vlad Dracula.  Não vou largar spoilers sobre o filme.  Para quem não o viu, basta dizer que é um filme que conta uma história longa e complexa, cheia de peripécias, tendo como pontos-de-vista cinco bandidos envolvidos num golpe, e o que acontece a cada um deles.  Nos últimos minutos há uma reviravolta espantosa na narrativa, quando o mistério final se revela.

A narrativa policial de mistério gira em torno disso: o mistério, a coisa estranha e inexplicável, que cabe à história solucionar.  A história de mistério não precisa ser policial: pode ser mistério com FC, mistério com horror.  Basta que haja um mistério, que o leitor ou espectador seja provocado a propor uma explicação.  O jogo dedutivo entre Sherlocks e Moriartys é o mesmo jogo do leitor, querendo adivinhar o pensamento e as intenções do autor.  Coube a Ellery Queen disciplinar esse xadrez de pistas e de suspeitas, quando criou nos anos 1930 o “Desafio ao Leitor” que interrompia seus romances. “Vocês já têm nas mãos todas as pistas que Ellery Queen usou para descobrir o criminoso”. 

O termo clássico para isso é “fair play”.  Se é um jogo entre intelectos habilidosos e atentos, é preciso jogar limpo com o leitor. Existem indícios? Então, que o leitor tenha acesso a eles, e só precisa interpretar corretamente cada fragmento de informação.  O interessante é a diferença de conceito de “fair play” no romance literário dos anos 1930 ou no taquicardíaco cinema de 2015.  No livro, a gente pode se deter, voltar algumas páginas, consultar um diálogo, checar uma data, ou seja: as pistas continuam ali onde o romancista as colocou, e o leitor volta lá quantas vezes quiser. É possível uma leitura não-linear.

Já o cinema virou um tobogã. Os Suspeitos tem um excelente roteiro, que faz um bordado complexo de peripécias e de agentes duplos, onde nunca se tem certeza de nada.  É num certo sentido um filme sobre o talento do repentista que não é poeta, mas é um contador de histórias.  Só que no cinema a projeção do filme é linear, sessão contínua até o fim. Filme de sala. As pistas passam, mas passam muito rápidas, piscou perdeu.  (Muitos diretores se comprazem em mostrar de novo tudo, no final: “olha aqui, eu mostrei bem claro...” ) Só em casa, com DVD e controles, ele vai ter com o filme uma experiência tão livre quanto a que um leitor tem com um livro; uma dimensão a mais, para poder saltar pra qualquer ponto da história.




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