quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

3723) O tio de Tonta (29.1.2015)




(ilustração: Leszek Bujnowski)

Tonta era na verdade Antonia, uma amiga nossa que morava perto da palhoça do “Buracão”. De vez em quando a gente ia fazer um pit-stop na casa dela antes de ir para os shows no ginásio da AABB. Tonta era uma menina ótima, topava todas, gostava de reunir a galera na casa dela para ouvir música. E ela tinha um tio que tinha a mania de tocar nas coisas com um dedo. A gente sentava na sala, uma turma de seis ou sete, ouvindo música, conversando, abrindo uma latinha de cerveja; alguns iam para um terraço lateral, para acender um cigarro sem empestar as cortinas. E daí a pouco o tio chegava.

Era um cara baixo e gordinho, irmão da mãe dela, solteirão, aposentado precoce por motivos de saúde, passava o dia ouvindo rádio e fazendo palavras cruzadas. Quando a sala se enchia de gente, ele vestia uma roupa apresentável e vinha sentar num canto, discreto, sem interferir.  Tonta dizia que ele se sentia melancólico e achava os jovens muito alegres e bem humorados.

O problema era o cacoete. De início eu não reparei (ninguém reparou), mas aos poucos fomos notando que ele levantava no meio da conversa, ia andando como quem não quer nada, aí estendia a mão, tocava num vaso sobre a mesa de centro, e voltava a sentar.  Às vezes, aproximava-se da gente para perguntar as horas ou algo assim, e tocava no ombro da gente. Só comecei a me intrigar no dia em que ele alegou estar vendo uma aranha na parede, arrastou uma cadeira, subiu nela e tocou numa foto do Led Zeppelin que Tonta tinha pregado por cima da cristaleira.

Tonta explicou que era uma compulsão.  De repente ele via uma coisa que já tinha visto mil vezes e sentia uma pressão irresistível de tocar nela. Pra que? Ele mesmo não sabia.  Sabia somente que, enquanto não tocasse, aquele comichão mental não o deixaria em paz.  Não adiantava ir para o quarto, se trancar, a coisa não passava.  (Uma vez, quando nos despedíamos à porta, ele veio do quarto correndo, tocou na mochila de alguém, e voltou correndo pro quarto.)

O que quer dizer isso?  A família já tinha assimilado aquela neura, porque vou te contar, poder assimilativo de famílias é uma coisa vasta. E afinal, todo mundo não é assim um pouco?  A gente vê um livro e não descansa enquanto não ler, ouve falar numa cidade e tem que ir lá de qualquer maneira, conhece uma mulher numa festa e não sossega enquanto não experimentar. E parece que depois que toca, desencanta. Aquela imagem vira uma realidade, perde as mil ficções que tinha sido. Vira uma coisa a mais, uma pessoa a mais, um pedaço do mundo que deixou de ser um pedaço da gente. Vira uma coisa possível, ao alcance de uma ponta de dedo banalizadora.





Um comentário:

Unknown disse...

Moro no São José e estou curioso sobre essa palhoça do buracão.