sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

1493) A Razão Cínica (26.12.2007)




A Razão Cínica consiste em dizer: “O mundo não presta, e é melhor você não prestar também”. Ela dá um diagnóstico pessimista sobre a qualidade moral do mundo, e procura tirar o melhor partido possível dessa situação. O cinismo pode ser necessário quando o indivíduo se vê em desvantagem e, para evitar um prejuízo ainda maior, abre mão, provisoriamente, de alguns escrúpulos. É um recurso extremo – como a violência, ou a fuga, ou a mentira. E, assim como elas, não pode ser um meio de vida. Serve para evitar um mal maior, mas não é norma de conduta de um sujeito que se preze.

“Acostuma-te à lama que te espera! O homem, que nesta terra miserável vive entre feras, sente inevitável necessidade de também ser fera”. O soneto de Augusto dos Anjos é um dos poemas mais dolorosamente cínicos de nossa literatura, ainda mais porque sabemos que ele expressa, com tamanho vigor e sinceridade, algo que Augusto não era. É um desabafo amargo, ressentido, revoltado, de alguém que perdeu a fé na humanidade à sua volta. O poeta assume um cinismo que não é seu, sugerindo a si próprio uma retaliação que jamais praticou. São “versos íntimos”, feitos de si para si mesmo, versos escritos para remendar um ego destroçado. Sabe-se lá qual foi a desilusão, entre as incontáveis que teve na vida, que levou o poeta a esse rompante de escárnio. Sabemos, contudo, pelos relatos dos que o conheceram, que sua atitude pessoal sempre foi o contrário disto.

“Versos Íntimos” é um monstro que Augusto extraiu de dentro de si para não tê-lo mais dentro de si. Como tantos monstros produzidos pelo sofrimento moral, veio carregado de uma revolta que tanto pode se transformar em fonte de ódio como em fonte de energia redentora. O cinismo pode ajudar a diminuir a dor num momento de crise, espezinhando aquilo ou aqueles que produziram essa dor. Quando associado, no entanto, aos momentos de triunfo, de auto-afirmação, de bem-estar, de Poder, o cinismo é o pior dos instrumentos.

A Razão Cinica insiste que todo o mundo é desonesto: “Venha! Junte-se a nós! Não seja otário, não fique aí parado!” Tenta nos fazer acreditar que de nada adianta lutarmos por uma causa perdida, ou insistirmos num trabalho que não faz sucesso, ou defendermos idéias que não dão resultado. Ela nos diz que numa negociação entre um egoísta (que só pensa em si) e um altruísta (que se preocupa com os outros) é matematicamente certo que o egoísta sairá ganhando, assim como um violento sempre ganhará num embate contra um não-violento. Um bom argumento contra isto é mostrar que se o número dos altruístas e dos não-violentos se multiplicar o bastante, suas chances de vitória aumentam proporcionalmente: são virtudes cujo poder está no coletivo. Esta é a idéia por trás das ideologias civilizatórias. A melhor maneira de eliminar a selvageria e a violência é diluindo-as numa maioria que rejeita o cinismo e defende um contrato social em que todos se respeitam e se apóiam mutuamente..


(Este texto está publicado no livro 78 Rotações, Natal, Editora Jovens Escribas, 2015.)




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