sábado, 8 de março de 2008

0110) A arte do lipograma (29.7.2003)



Já falei aqui sobre a arte do anagrama e a do palíndromo. Igualmente fascinante, para quem gosta de jogos de palavras, é a arte do lipograma.

O lipograma é qualquer texto onde esteja obrigatoriamente ausente uma ou mais letras. Será que o leitor é capaz de escrever um texto das dimensões desta coluna sem usar nem uma vez uma das letras do alfabeto? (Atenção – não valem letras como K, W ou Y).

Quando eu era pequeno, as revistas de jogos e passatempos traziam com frequência problemas como: “Num escritório, a máquina de escrever perdeu a tecla A, e a secretária teve que se virar para escrever a seguinte carta...” Seguia-se uma carta toda arrevesada, onde as palavras onde deveria aparecer um “A” eram substituídas por sinônimos tortuosos, mas no final das contas a gente só percebia a ausência da letra porque o enunciado do problema nos avisara.

A simples lógica nos mostra que é mais fácil produzir um texto curto que seja lipogramático do que um que inclua todas as letras do alfabeto. Quase toda frase tem várias letras faltando. Um lipograma deliberado, contudo, é um desafio que muitos escritores encaram com entusiasmo.

A tradição é antiga: o poeta grego Lasus (séc. 6 a.C.) escreveu uma ode aos Centauros e uma canção à deusa Ceres sem usar a letra “S”. Fulgêncio, autor latino, escreveu um livro de 23 capítulos que omitiam, sucessivamente, cada uma das letras do alfabeto. Um monge francês do século 12 fêz o mesmo num livro em versos sobre temas do Antigo Testamento. O ibérico Lope de Vega escreveu cinco poemas omitindo sucessivamente as cinco vogais.

Os maiores “tours-de-force” dos tempos modernos são o romance norte-americano Gadsby, de 1939 (a que já me referi no meu artigo de 20/6), um lipograma em “E” (que omite a letra “E”), e o do francês Georges Perec, La Disparition, que omite a mesma letra ao longo de suas 319 páginas.

Um caso radical do Lipograma é o que denominamos “Monovocalismo”: um Lipograma em quatro das cinco vogais, deixando apenas uma. Também pertence a Perec um dos marcos no monovocalismo, com um texto de 466 palavras onde se omitem E, I, O e U, e a a única vogal é o “A”. Eu próprio já publiquei um monovocalismo intitulado “A Arca”, com 574 palavras, onde é esta a única vogal utilizada.

Antevejo a inevitável pergunta: “Mas isso não é uma enorme perda de tempo”? Não sei. Talvez seja, sim, uma perda de tempo, como também o são coisas como jogar xadrez, soprar bolas de sabão, espiar a Lua com uma luneta, fazer cosca na barriga de um bebê, ficar um tempão sussurrando bobagens ao ouvido da namorada, fazer uma listagem das atividades que possam representar uma perda de tempo.

Também é, se você estiver fazendo na marra, por obrigação. O que não é o caso do presente artigo – que aliás é um Lipograma, omitindo uma letra que deixo ao leitor a tarefa de descobrir. Não é difícil. Eu faço essas coisas brincando.





4 comentários:

Anônimo disse...

Bráulio, o mais prazeroso neste seu desafio lipogramático secundário foi perceber que logo no início da sexta linha do primeiro bloco você deu a pista - deixando de usar um advérbio com a letra que falta. (O comentário chega atrasado, sei; recém descobri seu blog.)Abraço e admiração.

Braulio Tavares disse...

Fraga: Seu comentário me fez perder uns 15 minutos do meu precioso tempo tentando descobrir que diabo de letra estava faltando, e que diabo de avdérbio seria esse! Parece que a amnésia nos torna os leitores ideais de nossos próprios textos. Valeu! :-)

KAREN GREIN disse...

Acredito que seja a letra "H".Escritas constrangidas são passatempos bem divertidos e gostosos de fazer.

Elder Prates disse...

Olá, pessoal!
Para quem tiver interesse, segue o link de um trechinho do meu livro "O sonho de ser escritor", que foi escrito sem a letra "A".

http://www.elderprates.com/visualizar.php?idt=3226157


Abraço a todos!