sábado, 8 de março de 2008
0091) O bacurau (6.7.2003)
(Rua Maciel Pinheiro, foto BT)
Não aconselho aos jovens, porque dizem que as madrugadas de Campina Grande estão cada vez mais violentas. Mas houve um tempo em que eram tranqüilas como as madrugadas de Praga ou de Budapeste, e era possível caminhar sem pressa por aquelas ruas, vendo as lojas com as portas abaixadas, os letreiros luminosos apagados, os prédios às escuras. O silêncio era tal que quem estivesse parado diante do Cine Capitólio ouvia ao longe a conversa dos taxistas na esquina da Petrópolis.
“Bacurau” é o encontro de um pequeno grupo de rapazes para conversar noite afora, madrugada adentro, de pé numa esquina, ou numa praça, ou então caminhando a esmo em torno do H formado pela Marquês do Herval e a Maciel Pinheiro, unidas pela Cardoso Vieira. Éramos em geral uns cinco ou seis, mas lembro de bacuraus mais concorridos que tinham o dobro disto. O bacurau do Capitólio era um prolongamento natural da “segunda sessão”, a última sessão noturna que acabava às 11 e pouco. As discussões sobre o filme às vezes incluíam uma ida rápida a uma lanchonete, mas o traço distintivo do bacurau é que ele prescinde de bares ou coisa parecida. O bacurau é praticado ao ar livre, de pé, e quem cansar que sente no batente da loja.
Outro ponto para bacuraus era a esquina de Olacanti, com os atrativos adicionais dos ônibus corujões que chegavam e partiam da Rodoviária e da feirinha de frutas ali perto, escala obrigatória. Outro ponto que durou anos foi a esquina do Museu de Arte, no tempo em que este ficava no prédio que completa o quadrilátero com a Prefeitura, a Câmara de Vereadores e a Associação Comercial. Conversava-se tudo no bacurau. Cinema, política, piadas, música, vida alheia, filosofia, sacanagem, sexo, drogas e rock-and-roll. Era o tempo da ditadura militar (meu período áureo de bacuraus foi entre 1968 e 1973), mas nunca conversei com tanta liberdade.
O bacurau não é uma invenção de Campina Grande. Quando fui morar em Belo Horizonte, nosso ponto preferido era na Praça Afonso Arinos, em frente ao Hotel Del Rey, e quem ler o livro O Encontro Marcado de Fernando Sabino ou escutar a canção “Clube da Esquina” de Milton Nascimento, Lô & Márcio Borges, pode captar um pouco desse espírito.
Quem matou o bacurau foi o bar. Os caras vão crescendo, se empregando, casando, e de repente não é bom negócio passar a madrugada inteira em pé numa esquina. Ademais, precisa ter a resistência de um cara de 20 e poucos anos para ficar conversando em pé das 11 da noite às 4 da manhã, sem beber, sem usar drogas, e fazendo apenas um lanchinho de vez em quando.
O bacurau é um trecho fictício da vida real, aquele em que fingimos que o mundo opressivo das horas ensolaradas e ruidosas deixou de existir. A cidade é como uma mulher adormecida, deixando-se observar em sua nudez e seu silêncio. Naqueles momentos, os governos estão dormindo, as polícias estão de folga, os bancos estão desligados; e o mundo pertence a nós, que velamos por ele como se o sol nunca mais fosse nascer.
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Um comentário:
Braulio, vosmicê sempre é muito bom cronista. Nessa crônica vosmicê se excedeu atingiu, creia-me, o nível de Paulo Mendes Campos, o "nec plus ultra" dessa profissão de letras nesse gênero; vosmicê foi precisamente do ocasional para o eterno, da aldeia para o mundo. Aliás, somente para sublinhar a universalidade do fenômeno, garanto-lhe que o "bacarau" também existiu em Recife, em Boa Viagem para ser mais exato, até meados da década de 1980.
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