domingo, 12 de dezembro de 2021

4773) "The Beatles -- Get Back" parte 3 (12.12.2021)



 
A série de Peter Jackson The Beatles: Get Back, da qual vi agora a Parte 3, está chegando para nós como um bom documento sobre o processo criativo da banda, e de muitos outros artistas.
 
Convivo com muita gente que gosta de música mas, como trabalha com outra coisa, tem apenas uma noção muito distante do que é o processo de gravação de um disco.
 
Uma vez vi uma pessoa explicando a outra (embora se referisse, no caso, a um disco de cantora de MPB):
 
-- O letrista faz as letras, depois o compositor bota as melodias, o maestro ouve isso, escreve os arranjos, e no dia marcado a cantora e os músicos vão para o estúdio, ela canta, eles tocam, e os técnicos de som gravam as músicas, de uma em uma.
 
É uma descrição muito boa. Equivale a dizer que num país republicano o Poder Legislativo cria as leis, o Executivo as põe em prática, e quando há alguma dúvida o Judiciário decide quem tem razão.
 
Mas... como se sabe, a teoria na prática é outra.
 
Acho que Get Back só deve interessar mesmo às pessoas que têm um certo apego afetivo aos Beatles e suas músicas; e às pessoas que gostam de acompanhar o processo criativo dos artistas em geral. Eu me enquadro nos dois grupos.



 

Recentemente foi descoberto, na Holanda, o rascunho ou esboço desenhado do quadro de Rembrandt A Ronda Noturna, mostrando as primeiras idéias do pintor, que foram consideravelmente modificadas até resultar no quadro que todo mundo conhece.
 
https://veja.abril.com.br/cultura/ronda-noturna-rascunho-secreto-de-rembrandt-e-encontrado-sob-pintura/
 
Vi uma vez com álbum com dezenas de esboços e rascunhos de Picasso para o famoso Guernica. Sim, enchem um álbum. O mesmo poderia ser feito sobre milhares de quadros famosos. Ninguém chegou e foi logo pintando. É um processo comprido.
 
A criação artística se dá por muitos caminhos diferentes. O caminho escolhido pelos Beatles não foi sempre o que aparece nesta série. Em seu primeiro álbum, Please Please Me, o produtor George Martin organizou uma sessão contínua tentando reproduzir o “pique” de um show de palco.


Em 11 de fevereiro de 1963, das 10 da manhã às 22:45, os Beatles gravaram nove faixas do disco: “There’s a Place”, ”A Taste of Honey”, “Do You Want To Know a Secret”, “Misery”, “Anna (Go To Him)”, “Boys”, “Chains”, “Baby It’s You” e “Twist and Shout”.  São as versões que ouvimos até hoje.
 
O processo não foi tão simples. “Misery”, por exemplo, requereu 11 takes. Houve outras faixas que foram descartadas por não terem ficado boas. O elepê foi complementado com canções já lançadas como “singles” (“Love Me Do”, etc.).
 
Quando acabaram as turnês, o tempo que os Beatles passaram a gastar compondo no estúdio (onde se paga por hora de utilização) passou a ser enorme, em discos como Revolver, Sgt. Pepper’s e o famoso Álbum Branco. Meses inteiros consumidos em busca de uma sonoridade aqui, de um verso acolá, um solo não-sei-do-quê não-sei-onde. É pra quem pode. É pra quem vende dezenas de milhões de discos e fica semanas inteiras no número 1 das paradas de sucesso.
 
Já falei num artigo anterior que os Beatles iam chegando à forma definitiva das canções por um processo de aproximações sucessivas, de infinitas repetições ao longo das quais tudo ia sendo ajeitado aqui e ali e ganhando formato. Acordes, pulsações, versos, vocalizações em harmonia, a ordem das partes da canção.

 
Existe uma coisa interessante na “arte em processo”, ou na “obra em progresso”, que é a busca de uma forma ideal. Enquanto o artista está buscando esse ideal impossível, ele não se cansa de repetir algo um milhão de vezes, porque cada repetição é como a gota dágua pingando numa estalactite, deixa um residuozinho a mais, que o anima a continuar buscando.
 
Quando ele acha que encontrou essa forma ideal (talvez até por mera exaustão), passa a repeti-la para garantir sua cristalização definitiva. E ai começa a se enjoar dela. Aquilo começa a encher-lhe a paciência. Ele deixa de ser “O Perseguidor da Beleza”, e passa a ser “O Administrador da Perfeição” – o que, convenhamos, é um saco. O artista é capaz de repetir algo um milhão de vezes, quando é movido pela ânsia de acertar. Depois que a perfeição foi conseguida, ele passa a ser movido pela obrigação de não-errar, e a coisa perde a graça.


Essas reflexões acabam sedo úteis num documentário como este, mostrando a criação e gravação do que não é nem de longe um dos melhores discos dos Beatles. Eu coloco o álbum Let It Be numa área de importância criativa próxima de Rubber Soul ou de Help. Era justamente para essa fase que eles estavam tentando retornar neste projeto – “nada de overdubs, nada de trucagens, vamos tocar como a gente tocava no palco antigamente”. Era essa a idéia que alavancou Let It Be.
 
Se víssemos 8 horas de “reality show” sobre a criação e gravação de Revolver ou de Sgt. Pepper’s, não sei não. Talvez só enxergássemos o lado bom, será?  Por outro lado, ver a criação de um disco meramente bonzinho nos abre melhor os olhos, o julgamento, a capacidade de comparar, de discriminar, de discernir. Não é um grande disco. Para quem gosta dos bastidores da música, no entanto, é um grande momento documental, pois mostra o trabalho de gente que nessa época estava empurrando as fronteiras à medida que avançava.
 
Sobre o famoso “Rooftop Concert”, não sei se foi o primeiro, como algumas pessoas afirmam. Outros grupos já tinham tocado em lugares mais-ou-menos públicos, provocando um certo tumulto. No filme, não é possível saber quem lançou primeiro a idéia do “Bora Tocar Na Laje”. Lembro que Paul, no Episódio 1, sonhava com uma coisa meio juvenil, o grupo tocando num lugar proibido e a polícia invadindo e prendendo todo mundo.


De qualquer modo, o Concerto Na Laje é algo no espírito de vários números musicais dos filmes deles. Nas gravações de estúdio de TV em A Hard Day’s Night, em “And I Love Her”, Richard Lester usava a mesa de corte da TV para multiplicar o ângulo da câmera-única do cinema usando as câmeras-múltiplas da televisão. Ringo, em “If I Fell”, montava sem pressa a bateria com a canção já rolando, a tempo de realizar a entrada-de-bateria mais cronometrada da história do rock. Algo dessa bagunça brincalhona se repete na laje de Saville Row.


Em Help!, a gravação em estúdio de “You’re Gonna Lose That Girl” é interrompida por uma interferência sonora que se escuta ao fundo, e que no final revela serra a serra com que o piso está sendo cortado para que os thugs indianos possam raptar Ringo. Essa mistura meio juvenil de James Bond com Monty Python é própria do espírito dos Beatles, e é claro que uma câmera foi instalada na recepção para documentar a chegada da polícia.
 
Uma das melhores decisões de Peter Jackson neste documentário foi preservar de forma nítida a ordem cronológica dos fatos. É praticamente um mês de discussões, ensaios, criação, becos sem saída, bate bocas, looongas horas-do-recreio, atrasos... E a última vez em que os Beatles tocaram juntos para uma platéia acabou sendo um encerramento honroso, mesmo que nada apoteótico. Como diz Paul, com total conhecimento de causa: “É quando estamos contra a parede que conseguimos dar o melhor que temos”.  
 
Dois fatos importantes passam rapidamente no filme.



(Allen Klein com John Lennon e Yoko Ono)

Um deles é quando Lennon, na ausência de Paul, comenta com George que se reuniu na véspera com o empresário Allen Klein e ficou muito impressionado com ele. “O cara sabe mais sobre mim do que eu mesmo!...”  Lennon nomeou Klein seu procurador; McCartney estava fazendo o mesmo com o pai e o irmão da namorada (Lee e John Eastman). Essa clivagem de interesses, acho, pesou muito mais no fim da banda do que a presença, até discreta, de Linda Eastman e de Yoko Ono.


(Paul McCartney, com Lee e John Eastman)

 
Claro que a imprensa prefere escrever "pensatas" sobre as rivalidades amorosas, terreno onde  qualquer um (inclusive eu) pode especular à vontade, sem ter que pesquisar orçamentos, contratos, percentagens, cotações da Bolsa e filigranas jurídicas sobre direitos autorais.


Nessa mesma tarde da ausência de Paul no estúdio (isto é sintomático), George Harrison, com certa timidez, fala para Lennon que pensa em fazer um álbum com suas próprias canções. Queixa-se de que tem muita coisa composta, quer mostrar aos fãs, quer “desimpedir o caminho” para compor mais... Lennon simpatiza com a idéia. O assunto morre aí, porque George certamente não ficava à vontade para discutir o assunto com McCartney.
 
Resultado: George foi se desmotivando com a banda. Os interesses dos dois líderes começaram a divergir. A banda acabou. George lançou o álbum triplo All Things Must Pass, cheio de excelentes canções, musicalmente muito superior a Let It Be.
 
Hoje em dia, é a coisa mais comum os membros de uma banda manterem a banda e alternarem esses discos em conjunto com seus trabalhos “solo”. Os Beatles, pioneiros em tantas coisas, bem que poderiam ter sobrevivido sendo pioneiros nisto.








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