A série de Peter Jackson The Beatles: Get Back, da qual vi agora a Parte 3, está chegando
para nós como um bom documento sobre o processo criativo da banda, e de muitos
outros artistas.
Convivo com muita gente que gosta de música mas, como
trabalha com outra coisa, tem apenas uma noção muito distante do que é o
processo de gravação de um disco.
Uma vez vi uma pessoa explicando a outra (embora se
referisse, no caso, a um disco de cantora de MPB):
-- O letrista faz
as letras, depois o compositor bota as melodias, o maestro ouve isso, escreve
os arranjos, e no dia marcado a cantora e os músicos vão para o estúdio, ela
canta, eles tocam, e os técnicos de som gravam as músicas, de uma em uma.
É uma descrição muito boa. Equivale a dizer que num país
republicano o Poder Legislativo cria as leis, o Executivo as põe em prática, e quando
há alguma dúvida o Judiciário decide quem tem razão.
Mas... como se sabe, a teoria na prática é outra.
Acho que Get Back
só deve interessar mesmo às pessoas que têm um certo apego afetivo aos Beatles
e suas músicas; e às pessoas que gostam de acompanhar o processo criativo dos
artistas em geral. Eu me enquadro nos dois grupos.
Recentemente foi descoberto, na Holanda, o rascunho ou
esboço desenhado do quadro de Rembrandt A
Ronda Noturna, mostrando as primeiras idéias do pintor, que foram
consideravelmente modificadas até resultar no quadro que todo mundo conhece.
https://veja.abril.com.br/cultura/ronda-noturna-rascunho-secreto-de-rembrandt-e-encontrado-sob-pintura/
Vi uma vez com álbum com dezenas de esboços e rascunhos
de Picasso para o famoso Guernica.
Sim, enchem um álbum. O mesmo poderia ser feito sobre milhares de quadros
famosos. Ninguém chegou e foi logo pintando. É um processo comprido.
A criação artística se dá por muitos caminhos diferentes.
O caminho escolhido pelos Beatles não foi sempre o que aparece nesta série. Em
seu primeiro álbum, Please Please Me,
o produtor George Martin organizou uma sessão contínua tentando reproduzir o
“pique” de um show de palco.
Em 11 de fevereiro de 1963, das 10 da manhã às 22:45, os
Beatles gravaram nove faixas do disco: “There’s a Place”, ”A Taste of Honey”,
“Do You Want To Know a Secret”, “Misery”, “Anna (Go To Him)”, “Boys”, “Chains”,
“Baby It’s You” e “Twist and Shout”. São
as versões que ouvimos até hoje.
O processo não foi tão simples. “Misery”, por exemplo,
requereu 11 takes. Houve outras faixas que foram descartadas por não terem
ficado boas. O elepê foi complementado com canções já lançadas como “singles”
(“Love Me Do”, etc.).
Quando acabaram as turnês, o tempo que os Beatles passaram
a gastar compondo no estúdio (onde se paga por hora de utilização) passou a ser
enorme, em discos como Revolver, Sgt. Pepper’s e o famoso Álbum Branco. Meses inteiros consumidos
em busca de uma sonoridade aqui, de um verso acolá, um solo não-sei-do-quê
não-sei-onde. É pra quem pode. É pra quem vende dezenas de milhões de discos e
fica semanas inteiras no número 1 das paradas de sucesso.
Já falei num artigo anterior que os Beatles iam chegando
à forma definitiva das canções por um processo de aproximações sucessivas, de
infinitas repetições ao longo das quais tudo ia sendo ajeitado aqui e ali e
ganhando formato. Acordes, pulsações, versos, vocalizações em harmonia, a ordem
das partes da canção.
Existe uma coisa interessante na “arte em processo”, ou
na “obra em progresso”, que é a busca de uma forma ideal. Enquanto o artista está
buscando esse ideal impossível, ele não se cansa de repetir algo um milhão de
vezes, porque cada repetição é como a gota dágua pingando numa estalactite,
deixa um residuozinho a mais, que o anima a continuar buscando.
Quando ele acha que encontrou essa forma ideal (talvez
até por mera exaustão), passa a repeti-la para garantir sua cristalização
definitiva. E ai começa a se enjoar dela. Aquilo começa a encher-lhe a
paciência. Ele deixa de ser “O Perseguidor da Beleza”, e passa a ser “O
Administrador da Perfeição” – o que, convenhamos, é um saco. O artista é capaz
de repetir algo um milhão de vezes, quando é movido pela ânsia de acertar. Depois
que a perfeição foi conseguida, ele passa a ser movido pela obrigação de
não-errar, e a coisa perde a graça.
Essas reflexões acabam sedo úteis num documentário como
este, mostrando a criação e gravação do que não é nem de longe um dos melhores
discos dos Beatles. Eu coloco o álbum Let
It Be numa área de importância criativa próxima de Rubber Soul ou de Help. Era
justamente para essa fase que eles estavam tentando retornar neste projeto –
“nada de overdubs, nada de trucagens,
vamos tocar como a gente tocava no palco antigamente”. Era essa a idéia que
alavancou Let It Be.
Se víssemos 8 horas de “reality show” sobre a criação e
gravação de Revolver ou de Sgt. Pepper’s, não sei não. Talvez só
enxergássemos o lado bom, será? Por
outro lado, ver a criação de um disco meramente bonzinho nos abre melhor os
olhos, o julgamento, a capacidade de comparar, de discriminar, de discernir.
Não é um grande disco. Para quem gosta dos bastidores da música, no entanto, é
um grande momento documental, pois mostra o trabalho de gente que nessa época
estava empurrando as fronteiras à medida que avançava.
Sobre o famoso “Rooftop Concert”, não sei se foi o
primeiro, como algumas pessoas afirmam. Outros grupos já tinham tocado em
lugares mais-ou-menos públicos, provocando um certo tumulto. No filme, não é
possível saber quem lançou primeiro a idéia do “Bora Tocar Na Laje”. Lembro que
Paul, no Episódio 1, sonhava com uma coisa meio juvenil, o grupo tocando num
lugar proibido e a polícia invadindo e prendendo todo mundo.
De qualquer modo, o Concerto Na Laje é algo no espírito de
vários números musicais dos filmes deles. Nas gravações de estúdio de TV em A Hard Day’s Night, em “And I Love Her”,
Richard Lester usava a mesa de corte da TV para multiplicar o ângulo da
câmera-única do cinema usando as câmeras-múltiplas da televisão. Ringo, em “If
I Fell”, montava sem pressa a bateria com a canção já rolando, a tempo de
realizar a entrada-de-bateria mais cronometrada da história do rock. Algo dessa
bagunça brincalhona se repete na laje de Saville Row.
Em Help!, a
gravação em estúdio de “You’re Gonna Lose That Girl” é interrompida por uma
interferência sonora que se escuta ao fundo, e que no final revela serra a
serra com que o piso está sendo cortado para que os thugs indianos possam raptar Ringo. Essa mistura meio juvenil de
James Bond com Monty Python é própria do espírito dos Beatles, e é claro que
uma câmera foi instalada na recepção para documentar a chegada da polícia.
Uma das melhores decisões de Peter Jackson neste
documentário foi preservar de forma nítida a ordem cronológica dos fatos. É
praticamente um mês de discussões, ensaios, criação, becos sem saída, bate
bocas, looongas horas-do-recreio, atrasos... E a última vez em que os Beatles
tocaram juntos para uma platéia acabou sendo um encerramento honroso, mesmo que
nada apoteótico. Como diz Paul, com total conhecimento de causa: “É quando
estamos contra a parede que conseguimos dar o melhor que temos”.
Dois fatos importantes passam rapidamente no filme.
(Allen Klein com John Lennon e Yoko Ono)
Um deles é quando Lennon, na ausência de Paul, comenta
com George que se reuniu na véspera com o empresário Allen Klein e ficou muito impressionado
com ele. “O cara sabe mais sobre mim do que eu mesmo!...” Lennon nomeou Klein seu procurador; McCartney
estava fazendo o mesmo com o pai e o irmão da namorada (Lee e John Eastman).
Essa clivagem de interesses, acho, pesou muito mais no fim da banda do que a
presença, até discreta, de Linda Eastman e de Yoko Ono.
(Paul McCartney, com Lee e John Eastman)
Claro que a imprensa prefere escrever "pensatas" sobre as rivalidades
amorosas, terreno onde qualquer um (inclusive eu) pode especular à vontade, sem ter que pesquisar orçamentos, contratos,
percentagens, cotações da Bolsa e filigranas jurídicas sobre direitos
autorais.
Nessa mesma tarde da ausência de Paul no estúdio (isto é
sintomático), George Harrison, com certa timidez, fala para Lennon que pensa em
fazer um álbum com suas próprias canções. Queixa-se de que tem muita coisa
composta, quer mostrar aos fãs, quer “desimpedir o caminho” para compor mais...
Lennon simpatiza com a idéia. O assunto morre aí, porque George certamente não
ficava à vontade para discutir o assunto com McCartney.
Resultado: George foi se desmotivando com a banda. Os interesses
dos dois líderes começaram a divergir. A banda acabou. George lançou o álbum triplo
All Things Must Pass, cheio de
excelentes canções, musicalmente muito superior a Let It Be.
Hoje em dia, é a coisa mais comum os membros de uma banda
manterem a banda e alternarem esses discos em conjunto com seus trabalhos “solo”.
Os Beatles, pioneiros em tantas coisas, bem que poderiam ter sobrevivido sendo
pioneiros nisto.
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