É uma pergunta recorrente, que volta e meia me fazem: "Por
que a literatura brasileira explora tão pouco o Fantástico, prende-se tanto ao
modo realista de narrar?"
Eu mesmo me pergunto isso há décadas. Um livro que
recentemente comecei a folhear em busca de pistas é o ensaio Visão do Paraíso – Os Motivos Edênicos no Descobrimento
e Colonização do Brasil (Rio: Livraria José Olympio Editora, 1959, 1ª.
edição) de Sérgio Buarque de Holanda, o “pai de Chico”.
Sérgio Buarque não fala propriamente sobre literatura,
mas sobre mentalidade coletiva, sobre o espírito do século. É o espírito de que
os portugueses estavam possuídos durante aquele período crucial, quando os
navegadores ibéricos descobriram a América, descobriram o caminho para as
Índias, e fizeram a viagem de circunavegação.
Foram três façanhas movidas pela inspiração
científico-geográfica e pelo impulso colonizador-mercantil. Tiveram consequências
decisivas na nossa visão do mundo, do planeta. Agora ia ser preciso rever tudo,
recalcular tudo, redesenhar tudo.
O autor abre o capítulo inicial fazendo a constatação:
O gosto da maravilha e do mistério, quase inseparável da literatura de
viagens na era dos grandes descobrimentos marítimos, ocupa espaço singularmente
reduzido nos escritos quinhentistas dos portugueses sobre o Novo Mundo. (pág.
3)
Ele reconhece nos portugueses da época um temperamento
pragmático que, se por um lado os ajuda na resolução de problemas concretos,
por outro os limita na capacidade fabulatória:
O que, ao primeiro relance, pode passar por uma característica
“moderna” daqueles escritores e viajantes lusitanos – sua adesão ao real e ao
imediato, sua capacidade, às vezes, de meticulosa observação, dirigida, quando
muito, por algum interesse pragmático – não se relacionaria, ao contrário, com
um tipo de mentalidade já arcaizante para sua época, e ainda submisso a padrões
longamente ultrapassados pelas tendências que anima o pensamento dos humanistas
e, em verdade, de todo o Renascimento? (pág. 3)
Sérgio Buarque principia sugerindo que realismo e
particularismo seriam mais próprios da mentalidade medieval; e que o
Renascimento foi também um resgate da fantasia, da capacidade de imaginar o
inusitado, o surpreendente.
Desbravadores, exploradores, os portugueses entravam no
mundo novo desconfiados, de cenho franzido, dispostos a não se deixar iludir:
Muito mais do que as especulações ou os desvairados sonhos, é a
experiência imediata o que tende a reger a noção do mundo desses escritores e
marinheiros, e é quase como se as coisas só existissem verdadeiramente a partir
dela. (...) A obsessão de irrealidades é, com efeito, a que menos parece mover
aqueles homens, em sua constante demanda de terras ignotas. (...) Podem admitir
o maravilhoso, e admitiam-no até de bom grado, mas só enquanto se achasse além
da órbita do seu saber empírico. (pág.
8)
Riquezas espantosas, criaturas de pesadelo, monstros
marinhos ou terrestres, tudo isto fez parte do folclore das navegações de todos
os povos.
Um bom catálogo do “monstruário” que passava de país em país, de
século em século, de cultura em cultura, aparece em Esquecidos por Deus – Monstros no Mundo Europeu e Ibero-Americano
(séculos XVI-XVIII) de Mary Del Priore (Companhia das Letras, 2000). SBH vê a empresa portuguesa, de certa forma,
como um combate da razão contra as trevas:
A exploração pelos portugueses da costa ocidental africana e, depois,
dos distantes mares e terras do Oriente, poderia assimilar-se, de certo modo, a
uma vasta empresa exorcística. Dos demônios e fantasmas que, através de
milênios, tinham povoado aqueles mundos remotos, sua passagem irá deixar, se
tanto, alguma vaga ou fugaz lembrança, em que as invenções mais delirantes só
aparecem depois de filtradas pelas malhas de um comedido bom senso. (pág. 15)
SBH admite, sem dúvida, o lado positivo dessa atitude
geral, que de certo modo empurra para trás, em muitos aspectos, as sombras do
irracionalismo, e ajuda a inaugurar “novos caminhos ao pensamento científico”.
Ele cita Joaquim de Carvalho, em seus Estudos sobre a Cultura Portuguesa do século
XVI (1949):
“As idéias geográficas acerca da África começaram a ruir subitamente
com a passagem do Equador, e com este rasgo audaz os nossos pilotos articulam, ao
mesmo tempo, os primeiros desmentido à ciência oficial e aos prejuízos
comumente admitidos. A inabitabilidade da zona tórrida, certas idéias sobre as
dimensões da Terra, o ‘sítio do orbe’, as imaginadas proporções das massas
líquida e sólida do nosso planeta, os horríveis monstros antropológicos e
zoológicos, as lendas de ilhas fantásticas e de terrores inibitórios – tudo
isso que obscurecia o entendimento e entorpecia a ação foi destruído pelos
nossos pilotos com o soberano vigor dos fatos indisputáveis.” (pág. 15-16)
Como se vê, é um movimento complexo de superposição de
mentalidades, conflito de teorias, mas tudo isto num momento em que as
conquistas da observação e experimentação direta acabaram se afirmando mais
importantes e cruciais do que os voos imaginativos.
O mundo descoberto revela-se novo em tudo, surpreendente
em sua flora e fauna, inexplicável nos usos e costumes dos nativos. De certo
modo, tem-se a impressão de que nenhuma fantasia desregrada poderia superar em
estranheza as descobertas feitas ano após ano, década após década.
SBH comenta, já no capítulo 6:
Ao lado disso, não é menos certo que todo o mundo lendário nascido nas
conquistas castelhanas e que suscita eldorados, amazonas, serras de prata,
lagoas mágicas, fontes de juventa, tende antes a adelgaçar-se, descolorir-se ou
ofuscar-se desde que se penetra na América lusitana. (pág. 148)
Acontece aqui uma clivagem, uma separação brusca e nítida,
em mais um aspecto que vem se somar a tantos outros, entre a América hispânica
e a América lusitana (nós). Diferenças de espírito, de cultura, de visão do
mundo. Os portugueses seriam, então, menos propensos do que os espanhóis ao
cultivo fantasioso desses prodígios. Aqueles, por sua vez, teriam quem sabe
preservado uma fidelidade maior a esse espírito:
De ilhas encantadas, fontes mágicas, terras de luzente metal, de homens
e monstros discrepantes da ordem natural, de criações aprazíveis ou temerosas,
com que os novelistas incessantemente deleitavam um público sequioso de gestos
guerreiros e fantásticos sortilégios, rapidamente se foram povoando as
conquistas de Castela. (pág. 149)
SBH lembra que o conceito de Renascimento é muito amplo,
e que em cada nação e cultura faz surgir formas de pensar peculiares à História
de cada uma, o que resulta num “estranho conluio de elementos tradicionais e
expressões novas”.
Fica em aberto a questão da pouca evidência de
literaturas fantásticas nos países da América espanhola. Pelos registros que
temos, o fantástico latino-americano é um fenômeno do século 19, paralelo à
ficção científica européia que nós costumamos, um tanto arbitrariamente, mas com
lógica, traçar desde o Frankenstein
(1818) de Mary Shelley até as Viagens
Extraordinárias (segunda metade do século) de Jules Verne e os romances
científicos britânicos das suas últimas décadas.
O estudo de Rachel Haywood-Ferreira, The Emergence of Latin American Science Fiction (Wesleyan
University Press, 2011) inclui uma cronologia relativa a Argentina, Bolívia,
Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Guatemala, México, Peru e Uruguai.
A única obra anterior a 1800 é mexicana: “Siziglas y cuadraturas lunares ajustadas al
meridiano de Mérida de Yucatán por um anctítona o habitador de la luna, y
dirigidas al bachiller don Ambrosio de Echeverria, entonador de kyries
funerales en la parroquia del Jesús de dicha ciudad, y al presente profesor de
logarítmica en el pueblo de Mama de la península de Yucatán, para el año del
Señor de 1775”, de autoria do Fray Manuel Antonio de Rivas (1775).
Tudo indica que se trata de uma viagem fantástica (o
argumento fala numa viagem à Lua), um tipo de história bem contemporâneo dos escritos
de Voltaire, Jonathan Swift ou Cyrano de Bergerac.
Existe um abismo gigantesco entre os relatos dos
viajantes e marinheiros dos séculos 15-16 e a prosa de ficção brasileira dos
séculos 19-20, mas não deve ser exagerado ver entre os dois alguma continuidade
de espírito.
A narrativa brasileira, a prosa romanesca com certa
extensão, só veio a se desenvolver plenamente em meados do século 19, e chega a
dar um certo orgulho perceber que quando nosso romance deu seus primeiros
vagidos (como gostam de dizer os historiadores), seja com Teixeira e Sousa (O Filho do Pescador, 1843), seja com
Joaquim Manuel de Macedo (A Moreninha,
1844), não demoraria muito até o próprio Macedo conceber O Fim do Mundo (1857) e Joaquim Felício dos Santos as suas Páginas da História do Brasil, Escritas no
Ano 2000 (1868-1872).
A mentalidade que explorou o Brasil Colônia revela traços
variados que inevitavelmente se projetaram no futuro, e é preciso reconhecer
que estes nossos primeiros esforços na prosa de ficção se deram no Brasil
Império. Num contexto que, mesmo procurando a todo custo afirmar-se brasileiro,
estava totalmente impregnado do espírito português e dos veios literários
portugueses. Desse (segundo SBH) “conservantismo intrínseco, e tanto mais
genuíno quanto não é, em geral, deliberado”.
Um comentário:
Li o “Visão do paraíso” quando jovem e depois (como é de lei) reli umas tantas vezes. Hoje discordo, declino um pouco da ótica de SBH como você o chama. Se por um lado posso estar de acordo com o ponto de vista da visão pragmática portuguesa das descobertas, por outro desconfio da clivagem entre esta visão e a visão da mesma espanha descobridora de outras terras. Duvido que o mundo ibérico tenha gerado duas visões de mundo tão antípodas. Por outra, o que sinto quanto à produção de literatura fantástica no Brasil é uma certa desconfiança, um certo cinismo, que aí sim pode ser aparentado àquela, digamos, postura pragmática dos lusitanos. Neste sentido, lembro de uma Graphic Novel, em português com o título “Os mundos da magia”, no qual John Constantine lembra a seu pupilo Thimothy Hunter que os ingleses não se davam bem com os super-heróis, “aquela gente com uniformes colantes”, “cueca por cima da calça”. Ele argumentava que a Inglaterra era um país pequeno e dava a entender que somente um gigante como os Estados Unidos poderiam levar a sério este tipo de coisa. Talvez se dê o mesmo com o Brasil. Observo que a nossa atual produção de ficção científica/ fantasia padece desta mesma tensão. Os autores parecem pouco a vontade com a nossa falta de elfos e fadas (o Saci e a Yara não contam: um é negro e a outra é indígena), com a inadequação de naves espaciais com favelas. Até mesmo quanto a seus personagens surge a dificuldade para encontrar nomes adequados: que nome dar à princesa elfa, por exemplo? Que nome dar ao capitão da nave? Gislaine? Barbosa? Lembro de um autor que publicou um livro pela saudosa GRD, de Gumercindo Dorea, “Só sei que não vou por aí”, que batizou a seu cientista de Matias Boscovitch. Na ocasião eu pensei: bem, é uma solução de compromisso. O nome é esquisito e ambíguo o bastante para pertencer também a um personagem de ficção estadunidense. Me pergunto se ele ousaria um Antônio Bezerra, um Jádson; sei lá, um Dantas aí da vida. E é isso.
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