domingo, 21 de novembro de 2021

4766) Primeiras Estórias: "O Espelho" (21.11.2021)



“O Espelho” é uma das histórias mais enigmáticas de Guimarães Rosa, um conto fora-de-esquadro. Nem é propriamente conto, mas um arrazoado na primeira pessoa, com personagem-narrador suposto.
 
Rosa faz uma espécie de “filosofia do espelho” neste texto, anotando e comentando numerosas crenças, superstições ou conceitos de diferentes culturas a respeito do poder das imagens refletidas. É quase como se este conto fosse uma reescritura, sob um verniz ficcional muito leve, de algum caderno de anotações onde ele foi ao longo dos anos enumerando as interpretações que o fascinavam.
 
Um método que ele usou em outros textos. “São Marcos” (de Sagarana, 1946) resultou, confessadamente, de todo um glossário de superstições, feitiços e crendices que ele amealhou a vida inteira, e que depois se dispôs a bordar por cima do tecido liso de uma historieta.
 
Uma experiência roseana radical, nesse sentido, é o prefácio “Nós, os temulentos” (Tutaméia, 1967) onde ele pega mais de vinte piadas de bêbados e as enfileira numa pseudo-narrativa única, fazendo de conta que tudo aquilo aconteceu com o mesmo sujeito, ao longo de uma noite.
 
Nem por isso ”O Espelho” deixa de ser narrativo, de ter propriamente um enredo. O narrador, que o tempo todo se dirige a um presumível ouvinte (que pode ser o leitor), conta que certa vez viu a si mesmo inesperadamente, num espelho colocado em ângulo com outro; e aquela imagem lhe desagradou. Começou, então, o projeto meio quixotesco de examinar a fundo sua imagem refletida, “caçador de meu próprio aspecto formal”.
 
Começou por eliminar semelhanças com os animais, com os quais, segundo ele, todo vivente se parece. Diz que seu “sósia inferior na escala” era a onça, e tenta “não ver, no espelho, os traços que em mim recordavam o grande felino”. Daí, passa a eliminar também “o elemento hereditário”, em seguida o “contágio das paixões”, as “idéias e sugestões de outrem”, os “efêmeros interesses”...
 
Assim, camada após camada vão sendo subtraídas até que um dia, em vez de se deparar com o que seria seu verdadeiro rosto, o narrador se espanta:
 
Simplesmente lhe digo que me olhei num espelho e não me vi. Não vi nada. Só o campo, liso, às vácuas, aberto como o sol, água limpíssima, à dispersão da luz, tapadamente tudo. Eu não tinha formas, rosto? Apalpei-me, em muito. Mas, o invisto. O ficto. O sem evidência física. Eu era – o transparente contemplador?
 
O processo de eliminação radical chega a nos lembrar o primeiro prefácio do Tutaméia, reunindo “anedotas de abstração”, em que Rosa lembra a famosa definição de “nada”: “Uma faca sem lâmina, da qual se tirou o cabo.”
 
Diante da possibilidade de ter perdido a própria alma, de ter-se tornado um “des-almado”, o Narrador insiste em sua contemplação, em seu mergulho em si mesmo. E logo em seguida, depois de ter-se tornado invisível, ele percebe que outro fenômeno começa a suceder.
 
Por um certo tempo, nada enxerguei. Só então, só depois: o tênue começo de um quanto como uma luz, que se nublava, aos poucos tentando-se em débil cintilação, radiância. Seu mínimo ondear comovia-me, ou já estaria contido em minha emoção? Que luzinha, aquela, que de mim se emitia, para deter-se acolá, refletida, surpresa? Se quiser, infira o senhor mesmo. (...) Sim, vi, a mim mesmo, de novo, meu rosto, um rosto; não este, que o senhor razoavelmente me atribui. Mas o ainda-nem-rosto – quase delineado, apenas – mal emergindo, qual uma flor pelágica, de nascimento abissal... E era não mais que rostinho de menino, de menos-que-menino, só.
 
O conto é portanto o relato de um processo de individuação, de descoberta do “si-mesmo” após a cuidadosa raspagem psicológica de tudo que é externo e acessório ao indivíduo. Um processo vagaroso de iniciação que no fim deixa brotar a verdadeira alma, o verdadeiro rosto, num autêntico renascimento.  É um dos contos mais curiosos de Rosa porque alternadamente ele usa umas expressões que lembram a psicanálise e outras que lembram as práticas místicas tradicionais.


Alguns detalhes merecem comentário maior. O psicanalista carioca M. D. Magno, em seu livro Rosa Rosae (Rio: Aoutra, 1985) arma um interessante esquema dos contos de Primeiras Estórias, mostrando que “O Espelho”, dos 21 contos que compõem o livro, é o conto central, tendo dez antes de si e dez depois. E por isso funcionaria justamente como uma espécie de espelho onde os demais contos se refletem, de tal modo que há uma correspondência clara entre o conto número 1 (“As Margens da Alegria”) e o último (“Os Cimos” – que de fato é uma retomada dos personagens do conto inicial).
 
Do mesmo modo há um reflexo, um espelhamento entre o segundo conto (“Famigerado”) e o penúltimo (“Tarantão meu Patrão”) e assim por diante. (Rosa Rosae, pág. 155 em diante).
 
São correspondências e semelhanças que na maior parte dos casos talvez passassem despercebidas se não fosse a colocação tão precisa e tão deliberada de “O Espelho” bem no centro desses dois grupos simétricos, forçando o leitor a um segundo exame dos pares assim refletidos.
 
Outro ponto de interesse do conto também tem a ver com a Psicanálise. É quando o Narrador de “O Espelho” diz ter visto num lavatório de edifício público (o que não deixa de nos sugerir o edifício do Itamaraty, onde o diplomata Guimarães Rosa dava expediente) dois espelhos, um dele sendo móvel sobre uma porta com dobradiças, sendo os dois, combinados, capazes de fornecer uma imagem diferente da tradicional imagem “de frente” que vemos nos espelhos comuns.
 
Quem já usou os espelhos tripartites dos camarins de teatro familiarizou-se com essa possibilidade de enxergar o próprio rosto de perfil, coisa tão rara. E aliás esses espelhos estão cada vez mais presentes nos banheiros dos apartamentos e quartos de hotel modernos. Diz o Narrador rosiano:
 
Explico-lhe: dois espelhos – um de parede, e outro de porta lateral, aberta em ângulo propício – faziam jogo. E o que enxerguei, por instante, foi uma figura, perfil humano, desagradável ao derradeiro grau, repulsivo senão hediondo. Deu-me náusea, aquele homem, causava-me ódio e susto, eriçamento, espavor. E era – logo descobri... era eu, mesmo! O senhor acha que algum dia eu ia esquecer essa revelação?


Nada nos assusta mais do que flagrar o próprio rosto assim – estranhado, distanciado. E a reação do personagem de Rosa é exatamente a reação de quem tem a experiência do uncanny (“das Unheimlich”), que Freud define, em seu famoso ensaio homônimo de 1919, narrando um episódio praticamente igual:
 
Posso contar uma aventura semelhante. Estava eu sentado sozinho no meu compartimento no carro-leito, quando um solavanco do trem, mais violento do que o habitual, fez girar a porta do toalete anexo, e um senhor de idade, de roupão e boné de viagem, entrou. Presumi que ao deixar o toalete, que ficava entre os dois compartimentos, houvesse tomado a direção errada e entrado no meu compartimento por engano. Levantando-me com a intenção de fazer-lhe ver o equívoco, compreendi imediatamente, para espanto meu, que o intruso não era senão o meu próprio reflexo no espelho da porta aberta. Recordo-me ainda que antipatizei totalmente com a sua aparência.
(S. Freud, “O Estranho”, em Uma Neurose Infantil e Outros Trabalhos, vol. XVII das “Obras de Sigmund Freud”, Ed. Imago, 1969, trad. Eudoro Augusto Macieira de Souza, pág. 265n)
 
Ora, o “Unheimlich” freudiano é justamente aquela imagem peculiar que nos provoca ao mesmo tempo uma sensação de estranheza e de perturbadora familiaridade. E que criatura mais adequada para exprimir essa noção abstrata do que o próprio Eu?
 
Sim, são para se ter medo, os espelhos.
 


 

 
 
 
 





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