(ilustração: Pere Borrel de Caso, 1874)
O escritor Daniel Abraham, criador da série de ficção científica “Long Price Quartet”, conta uma história curiosa a respeito de seu primeiro texto publicado.
Por volta de 1996, ele estava vivendo “de favor” na casa de amigos, tentando virar escritor profissional, e teve essa idéia de escrever uma história sobre uma moça, Rebecca, que era engenheira de som e sofria de uma enorme timidez. Ela começa a seguir pessoas e a gravar os sons do mundo por onde essas pessoas circulam, compondo assim uma espécie de “trilha sonora” da vida delas.
O conto, que tem outros desenvolvimentos narrativos, foi publicado naquele ano na revista The Silver Web, com o título “Mixing Rebecca”. E Abraham conta (Locus, junho de 2008, trad. BT):
Anos depois, recebi uma mensagem de um cara que era engenheiro de som. Ele tinha gravado um álbum intitulado “Rebecca Remix”; e o nome dele era Daniel Abraham! Ela queria saber se meu nome verdadeiro era mesmo aquele, e se eu tinha andado atrás dele e aproveitado títulos dos trabalhos dele para botar nos meus trabalhos – algo que eu achei meio assustador. Foi um momento bem “Além da Imaginação”.
Será mentira? Não parece haver nenhum propósito em inventar uma história assim. “Daniel Abraham” me parece um nome judaico bastante comum, e se você pensa o termo “Remix” e procura um personagem feminino, “Rebecca” pode não ser o único, concordo, mas é um dos que me ocorreriam.
Coincidência, mas um pouco inquietante.
Caso parecido se deu com Julio Cortázar, que é um verdadeiro atrator para esse tipo de evento, que ele chama ao longo de sua obra como “convergências”, “constelações”, “figuras”, “concatenações instantâneas”, “bruscas coagulações” e outros termos. É o encontro aparentemente casual de coisas muito afastadas mas que acabam convergindo, de maneira inexplicável mas perturbadora.
No livro Todos os Fogos o Fogo (1966) ele publicou o conto “Instruções a John Howell”, em que o espectador de uma peça de teatro é levado aos bastidores no intervalo e convencido (ou forçado) a entrar no palco no segundo ato, interpretando de improviso o papel de “John Howell”, um marido cuja esposa o trai. Ele meio que se diverte com a situação, mas no palco a atriz que faz o papel da esposa sussurra ao seu ouvido: “Fique aqui, não deixe que me matem”, e ele percebe uma trama sinistra por trás daquilo tudo. (Não contarei o final – que aliás é enigmático.)
Pois bem: conta o mestre Julio (em Cortázar: Notas Para Uma Biografia, Mario Goloboff, Editora DSOP, 2014; trad. José Rubens Siqueira) que em setembro de 1973 recebeu uma carta de um leitor norte-americano chamado John Howell, que já havia lido outras obras cortazarianas, e que ao ler uma resenha de Todos os Fogos o Fogo descobriu que um dos contos citava seu nome.
E ele explica a Cortázar que também nunca foi ator, mas tem um
amigo em Nova York que praticamente o obrigou a aceitar um papel na peça que
estava dirigindo, e dessa forma ele subiu ao palco como ator durante três
meses, na única experiência teatral que teve na vida. E conta que, como também
escrevia de vez em quando, escreveu um conto passado em Paris e deu ao
personagem o nome de Julio Cortázar, porque sabia que este escritor era um
morador parisiense.
O que não fica claro, na biografia de Mario Goloboff, é se quando Howell batizou o personagem como “Cortázar” já sabia (ou não) que Cortázar tinha batizado um personagem seu como “Howell”. E se o amigo diretor de teatro sabia deste último caso, e resolveu usá-lo como ator de propósito.
Cortázar, como já falei é um verdadeiro “atrator” para tais episódios. Seu conto “Queremos tanto a Glenda” (1980, livro do mesmo nome; no Brasil, Orientação dos Gatos) imagina uma trama curiosa em torno de uma atriz de cinema, Glenda Garson, que é uma visível homenagem a Glenda Jackson (que ele não conhecia pessoalmente, mas admirava). No livro Fora de Hora (1982), ele publicou o texto “Garrafa ao Mar” onde comenta o fato de que logo após a publicação daquele livro Glenda Jackson, a verdadeira, estrelou um filme intitulado Hopscotch, ou seja, “O Jogo da Amarelinha”.
O que não fica claro, na biografia de Mario Goloboff, é se quando Howell batizou o personagem como “Cortázar” já sabia (ou não) que Cortázar tinha batizado um personagem seu como “Howell”. E se o amigo diretor de teatro sabia deste último caso, e resolveu usá-lo como ator de propósito.
Cortázar, como já falei é um verdadeiro “atrator” para tais episódios. Seu conto “Queremos tanto a Glenda” (1980, livro do mesmo nome; no Brasil, Orientação dos Gatos) imagina uma trama curiosa em torno de uma atriz de cinema, Glenda Garson, que é uma visível homenagem a Glenda Jackson (que ele não conhecia pessoalmente, mas admirava). No livro Fora de Hora (1982), ele publicou o texto “Garrafa ao Mar” onde comenta o fato de que logo após a publicação daquele livro Glenda Jackson, a verdadeira, estrelou um filme intitulado Hopscotch, ou seja, “O Jogo da Amarelinha”.
O autor comenta, dirigindo-se ficticiamente à atriz::
Ter chegado do México trazendo um livro que é anunciado com seu nome, e encontrar seu nome em um filme que é anunciado com o título de um dos meus livros, já significava uma bonita jogada do destino que tantas vezes me aprontou jogadas semelhantes.(Fora de Hora, Nova Fronteira, 1985, trad. Olga Savary)
Como em tudo que envolve o Sobrenatural – ou pelo menos o Insólito –, ficamos remexendo nos detalhes em busca de uma explicação racional qualquer. Que muitas vezes existe e resolve tudo. Mas... e quando nenhuma explicação racional se mostra satisfatória?
Meu caso preferido nessa área é um episódio narrado por Alan Vaughan em seu Incredible Coincidence (1989). Em 1966, um grupo de professores estava reunido em Londres, tentando por brincadeira imaginar um romance futurista. Um deles sugeriu que um personagem poderia ser um refugiado, vindo talvez da Hungria. Outro, buscando um nome tipicamente húngaro, sugeriu que o personagem se chamasse “Horvath-Nadoloy”.
Dias depois, um deles viu no jornal a notícia de que a polícia tinha encontrado no Hyde Park um estrangeiro, aparentemente desmemoriado, dizendo que se chamava Horvath-Nadoloy. E comentou: “Sentimos que tínhamos inventado esse vagabundo, e ao longo do processo de inventá-lo acabamos por trazê-lo à vida, e uma vida não muito agradável.”
Algumas seitas místicas e alguns grupos de pseudo-ciência dizem que a mente humana é capaz de criar pessoas pelo simples poder de invocá-las mentalmente. Digamos que fosse verdade. Neste caso, o mundo em que vivemos estaria coberto por uma superpopulação mais que absurda. A densidade demográfica de qualquer área do deserto do Saara seria maior do que a de Meca em dia de peregrinação.
Não é bem assim. Acho que Cortázar se aproxima da verdade quando fala que o que produzimos não são os seres, mas sim as conexões entre eles, aproximando-os em função de um nome, de um endereço, de hábitos compartilhados, de lugares frequentados por criaturas que imprevisivelmente revelam ter algo em comum.
Histórias de ficção têm sempre um pé na realidade, falam de cidades, de pessoas, de ambientes, de profissões, de atividades humanas, de ritos sociais, e tudo isso são constelações de elementos que se repetem, porque na Física das culturas humanas o Semelhante atrai o Semelhante e ao mesmo tempo atrai também, grudado a ele, o Oposto.
O entrecruzamento das linguagens e dos meios de comunicação humana gera um algoritmo próprio, sem controle central.
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