Lendo sobre o arraial de Canudos e a guerra civil
descrita em Os Sertões, acabei
intercalando essa leitura, sem querer, com a das memórias de Conan Doyle, Memories and Adventures (1924).
O criador de Sherlock Holmes é talvez minha primeira
grande descoberta literária. Nos anos 1950, a Editora Melhoramentos lançou uma
coleção de suas obras em 26 volumes. Graças à boa vontade de minha Tia Adiza, que
assinou a coleção (recebia 2 volumes por mês), li toda, e tenho ainda hoje
todos os livros. Pelo menos um deles, Contos
do Ringue e de Guerra, é o mesmo exemplar que li quando menino.
Conan Doyle teve uma vida movimentada. Como todo inglês,
procura rastrear origens nobres de sua linhagem, e afirma descender da casa dos
Plantagenetas. Curiosamente, era de família irlandesa mas seu pai, por questões
de emprego, mudou-se ainda jovem para a Escócia, e o menino Arthur nasceu ali,
em Edinburgh. (Jorge Luís Borges, num soneto, o chama de “irlandês”, e vejo
agora que não estava tão equivocado assim.)
Gostava do mar e sua primeira grande aventura foram meses
num navio baleeiro, com vinte e poucos anos. Depois de se formar, foi médico de
bordo de outros navios. Era grande observador de ambientes e de tipos humanos,
uma característica da literatura de seu idioma e de sua época. Seu primeiro
livro foi o hoje famoso Um Estudo em Vermelho
(1887), a primeira aventura de Sherlock Holmes, que nessa primeira edição
passou despercebido. Em seguida, ele produziu uma obra um pouco mais ambiciosa:
um livro sobre guerra civil e fanatismo religioso.
Micah Clarke (1888)
foi publicado no Brasil como A Narrativa
de Miquéias Clarke, numa saborosa tradução de Agenor Soares de Moura. Conta
a revolta protestante de 1685 liderada pelo Duque de Monmouth contra o rei James,
católico, que não era simpático a uma parte considerável da população.
Monmouth, que vivia na Holanda, desembarcou na Inglaterra proclamando-se rei,
passou alguns meses arregimentando um exército composto em sua maioria por
fanáticos mal-treinados mas decididos (um pouco como os jagunços de Canudos), e
acabou derrotado na Batalha de Sedgemoor pelas forças mais bem equipadas, e mais
experientes, do exército Real.
O livro de Doyle conta essa aventura, por meio do jovem
Miquéias Clarke. O pai dele é protestante, e ajuda o rapaz a se engajar na
batalha através do veterano Decimus Saxon, um mercenário a serviço de Monmouth.
Miquéias é aquele rapagão de vinte anos e com dois metros de altura, cheio de
vigor físico e boas intenções. Saxon é um dos grandes personagens da obra de
Doyle: grisalho, calejado, malicioso, estrategista, com um olho infalível para entender
situações bélicas e para detectar as espertezas alheias.
(Conan Doyle)
Falando desse romance, escrito aos 28 anos de idade, Conan
Doyle recorda:
Esperando ainda a publicação do meu primeiro livro, e sentindo-me invadido por idéias de grande porte, decidi testar minhas forças e escolhi um romance histórico para este fim, porque me parecia a melhor maneira de combinar uma certa dignidade literária com aquelas cenas de ação e aventura que brotavam naturalmente de minha mente ardente e jovem. Sempre experimentei simpatia pelos Puritanos, que, apesar de suas peculiaridades, representaram a liberdade política e a sinceridade religiosa. Geralmente têm sido objeto de caricaturas, na ficção e na arte. Mesmo [Walter] Scott não os retratou como eram. Macaulay, sempre uma das minhas inspirações, foi o único que os tornou compreensíveis: aqueles lutadores soturnos, com suas Bíblias e seus espadagões. Há uma passagem sua (não posso citá-la literalmente) em que ele afirma que após a Restauração se alguém visse um peão mais inteligente que os demais, ou um camponês que lavrasse melhor a terra, podia ter a certeza de tratar-se de um ex-guerreiro de Cromwell. Esta foi minha inspiração para Micah Clarke, onde me deixei galopar à solta pela estrada larga da aventura. Eu estava impregnado de História, mas mesmo assim passei alguns meses pesquisando detalhes, e depois escrevi o livro com certa rapidez. Há passagens nele, como a descrição dos lares dos Puritanos, ou o retrato do Juiz Jeffreys, que não creio haver superado.(p. 76, trad. BT)
Quando Monmouth reúne suas precárias tropas na cidade de
Taunton, começamos a sentir o “tom” dessa insurreição desunida nas palavras do
personagem (real) do pastor John Ferguson, exortando o “rei Monmouth” à
batalha:
– Vou tornar bem claro o meu pensamento, Majestade. Não chegou ao nosso conhecimento que Argyle está perdido? E por que é que ele se perdeu? Porque não teve fé firme nas obras do Onipotente e teve forçosamente de rejeitar o auxílio dos filhos da luz trocando-o pelo da raça miserável dos fautores do prelatismo, que são meio pagãos, meio papistas. Se ele tivesse andado no caminho do Senhor, não estaria agora na prisão de Edimburgo com a corda ou a machadinha diante dos olhos. Por que não cingiu ele os rins e não marchou diretamente para a frente com a bandeira da luz, em vez de deter-se aqui e parar como um Dídimo poltrão? O mesmo ou pior nos sucederá se não marcharmos pelo país dentro e não fincarmos os nossos estandartes diante da perversa cidade de Londres – a cidade onde tem de ser feita a obra do Senhor, e o joio tem de ser separado do trigo e amontoado para arder no fogo.(pág. 258-259, trad. A. S. M.)
Treinamento militar e armamento capaz, para soldados
assim, não substituem a fé a o apoio divino. É um insurreição armada na base do
“Deus proverá!”. Narra Miquéias:
Na cidade inteira ressoavam pregações. Cada tropa ou companhia tinha o seu orador escolhido, e às vezes mais de um, que discursava e expunha. De barris, carroças, janelas, e até mesmo do alto das casas, eles falavam às multidões embaixo; e nem se diga que sua eloquência não produzia efeito. Ouviam-se pelas ruas gritos roucos e ferozes, de mistura com orações entrecortadas e jaculatórias. Os homens andavam ébrios de religião como se fosse de vinho. Tinham o rosto afogueado, a voz pastosa, os gestos desordenados. Sir Stephen e Saxon sorriam um para o outro ao observarem aquela gente, pois sabiam, como soldados veteranos, que de todas as coisas que tornam um homem valente nos seus atos e indiferente à vida, o ímpeto religioso é o mais forte e o mais duradouro.(pág. 412, trad. A. S. M.)
2 comentários:
Já estou com vontade de ler.
Texto admirável como sempre, Braulio.
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