É uma das histórias fantásticas
mais elogiadas da literatura latino-americana. Aura (1962) de Carlos Fuentes é uma daquelas noveletas intensas que
num livro ocupam 90 páginas e na tela utilizam 90 minutos. Não precisam de mais
do que isto.
Aura tem uma história toda
sensorial, depende o tempo inteiro do ouvido, do tato, do cheiro, mais que da
visão. A casa da senhora Consuelo vive mergulhada numa penumbra obrigatória,
como convém a uma matriarca implacável sul-americana. A todo instante o narrador
precisa registrar um vislumbre de luz, uma passagem que se abre e se fecha, providências
concretas rapidamente resolvidas para não atrapalhar a história de vampirismo
psíquico que se segue.
Plot básico: um jovem
professor de francês aceita proposta financeiramente generosa para trabalhar de
secretário para uma Madame, viúva de um general, com a função de organizar e publicar
os papéis do falecido. A casa é soturna, escura, toda fechada, e na companhia
da viúva quase centenária ele descobre uma moça chamada Aura, que parece ser
sobrinha da senhora.
É apenas o clima. Em
matéria de plot, Aura é de uma
direiteza franciscana. A ambição financeira e o desejo erótico arrastam o
personagem para um redemoinho de onde ele não consegue mais sair. O rapaz
percebe que a mulher mais nova é uma aura, uma holo, uma projeção virtual da
energia que a velha suga dele. Mas ele não consegue resistir.
O conto pertence a esse
time de histórias claustrofóbicas de possessão, como “A Aranha” de H. Heinz
Ewers, ou “O Inquilino” de Roland Topor, ou “A Queda da Casa de Usher” de Edgar
Allan Poe. Ou quem sabe “Morella” do mesmo Poe, que lida com o tema da mulher
que depois de morta retorna íntegra na própria filha.
Não é um tema raro em
Poe, porque em “Ligéia” ele faz a mulher morta voltar aos braços do marido, ao
ocupar, primeiro espiritualmente, e depois fisicamente, o corpo de sua segunda
esposa. May Synclair tem um conto semelhante, onde a esposa morta surge para seduzir
de novo o ex-marido.
Um clichê nas
histórias de terror é o homem que abraça o fantasma de uma linda mulher, muitas
vezes nua, sempre oferecida, irresistível, apenas para vê-la encarquilhar-se em
seus braços e se transformar numa gárgula, numa ave de rapina, numa múmia, na
negação escarninha de tudo quanto o levara até ali.
A mulher na banheira
do quarto 237 em O Iluminado de
Kubrick. As súcubas de Saragoça, sedutoras ao primeiro toque, letais no último.
O que Aura traz de diferente é essa
capacidade de difração da personagem, de projetar dois fachos distintos da
mesma energia original, mesmo que cada uma roube energia à outra. É uma
história de feitiçaria, feitiçaria européia; um duplo conscientemente
focalizado e projetado para que todo mundo o veja.
Não falei ainda do
detalhe que talvez seja o mais evidente do livro: ele é todo narrado na segunda
pessoa, o “você”, que o autor usa com admirável rigor do princípio ao fim:
Você lê esse anúncio: uma oferta
assim não é feita todos os dias. Lê e relê o anúncio. Parece dirigido
diretamente a você, a ninguém mais. Distraído, deixa cair a cinza do cigarro
dentro da xícara de chá que estava bebendo neste café sujo e barato. Torna a
ler. Solicita-se historiador jovem. Organizado. Escrupuloso. Conhecedor da
língua francesa. Conhecimento perfeito, coloquial. Capaz de desempenhar funções
de secretário. Juventude, conhecimento do francês, preferentemente que tenha
vivido na França por algum tempo. Três mil pesos mensais, comida e aposento
cômodo, batido pelo sol, estúdio bem instalado. Só falta o seu nome. Falta
apenas que as letras do anúncio informem: Felipe Montero. Solicita-se Felipe
Montero, antigo bolsista da Sorbonne, historiador cheio de dados inúteis,
acostumado a exumar papéis amarelados pelo tempo, professor auxiliar em escolas
particulares, novecentos pesos mensais. Mas se você lesse isso, ficaria
desconfiado, tomaria tal coisa como brincadeira. Donceles 815. Apresentar-se
pessoalmente. Não há telefone.
(Aura, Ed. L&PM, tradução Olga Savary, 2015)
Quantos mil contos
fantásticos, aventurescos ou criminológicos não terão começado assim, com um
personagem jovem, inteligente, em agruras financeiras, recebendo por meios
escusos ou sobrenaturais, ou num mero anúncio classificado, a famosa Proposta
Irrecusável? Felipe vai à casa atraído pelo dinheiro, e não consegue mais sair
dela, visgado pelo corpo quase luminescente de Aura.
Lembrei de outro livro
que começa fazendo uso desse você: Se um
Viajante num Noite de Inverno, de Ítalo Calvino. Calvino faz um jogo hábil
de tentar enredar o leitor no labirinto de premissas narrativas que ele começa
a criar. Mas o “você” de Calvino se dirige mesmo a “mim”, que estou lendo. No de
Carlos Fuentes não é ao leitor que o “você” se dirige, é somente ao personagem,
em momento algum ele troca idéias com o leitor.
Fuentes se dirige ao
personagem, profetizando as coisas no instante em que elas se desencadeiam, definindo
um rumo irrecusável. Não há liberdade nem escape para esse “você” condenado ao
sacrifício ritual que uma história fantástica se sente obrigada a oferecer ao
seu deus sem face.
O sacrifício, no caso,
pertence a um feitiço trazido da Europa por esse casal. Aura (ou a senhora
Consuelo, mas esta raramente deixa o leito) cuida de um jardinzinho no pátio,
que Felipe Montero, o rapaz culto e sorbonniano, reconhece sem esforço.
Você distingue as formas altas,
cheias de ramos, que projetam suas sombras à luz do fósforo que se consome,
queima-lhe os dedos., obriga-o a acender um novo para acabar de reconhecer as
flores, os frutos, os talos que você lembra de terem sido mencionados em velhas
crônicas: as ervas esquecidas que crescem perfumadas, adormecidas – as folhas
amplas, longas, fendidas, peludas do meimendro; o caule sarmentoso de flores
amarelas por fora, vermelhas por dentro; as folhas rígidas e agudas da
dulcamara; a penugem cinzenta do verbasco, suas flores espigadas; o arbusto
ramoso do evônimo e as flores esbranquiçadas; a beladona.
(p. 54-55)
Felipe Montero é meio
personagem de tragédia grega, porque o autor se transforma numa espécie de
demiurgo pessoal, e passa a cuidar apenas dele.
E ele se deixa prender
à armadilha contida naquele classificado, com o mesmo desprendimento que faz
William Holden querer ficar vivendo na mansão de Joan Crawford, em Sunset Boulevard.
O fatalismo contido no
“você” do livro de Carlos Fuentes é tão insólito quanto o “eu” desse narrador,
o roteirista interpretado por William Holden, que conta a história depois de
morto. É como se Holden dissesse ao público: “prestem atenção, nada mais no
passado vai mudar, quando a gente morre o passado se torna irrevogável”, e Fuentes
falasse a Montero: “Presta atenção: você não passa de um personagem, um avatar
para que eu não suje as mãos. Faça o que eu estou dizendo, e bote as mãos pro
céu.”
Um comentário:
Uma mansão soturna, uma velha esquisita apegada ao passado e uma mocinha luminosa: Grandes esperanças de Charles Dickens. ;)
Abração
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