Um mês atrás
compartilhei no Facebook um pedido de doação de
sangue para o jornalista Geneton Moraes Neto, que estava hospitalizado. Acendi
a luz amarela de alerta, mas não houve novidade nos dias seguintes e acabei
esquecendo. Não tínhamos contato direto (mais por culpa minha, que hoje sou um
anacoreta com direito a redes sociais). Eu o via por acaso – fosse num corredor
da Globo (nas vezes em que trabalhei lá), num lançamento de livro, ou algo
assim. Nosso último papo tinha sido antes da sessão de lançamento do filme Brincante de Walter Carvalho e Antonio
Nóbrega, aqui no Rio.
Geneton, como tantos de nós, era um Mágico de Oz
comandado de dentro por um cineclubista. No caso dele, um cara moreno, barbudo
e enfezado, que fazia uns filmes despirocantes no Recife, no meio de uma turma que
incluía Jomard Muniz de Britto, Paulo Cunha, Amin Stepple – este último de
Campina Grande, amigo meu de geração, que me apresentou aos demais. Quando Amin
e Geneton surgiam caminhando lado a lado na calçada me lembravam Dom Quixote e
Sancho Pança, um longilíneo e encurvado, o outro atarracado e hirsuto.
O superoitista virou jornalista. Acompanhei muitas das
grandes entrevistas que ele fez para a TV Globo, e ver Geneton entrevistar era
um pouco como ver alguém montar num boi brabo. Ao vê-lo formular certas
perguntas a um ex-presidente ou a um general, minhas mãos se cobriam de suor
frio. Eram perguntas que eu tinha vontade de fazer, mas morreria e não faria
mesmo que por trás de mim, me bancando, estivessem não apenas a Rede Globo, mas
o Pentágono, a KGB e os duzentos jagunços de Augusto Santa Cruz.
Perguntar é a arma do repórter (o que GMN foi na medula,
ao fim e ao cabo; o que se orgulhava de ser), mas uma arma de alto risco, cuja
bala pode inclusive inverter a direção depois de disparada. O entrevistado pode
até ter um acesso apoplético (como o general Newton Cruz esteve a ponto de ter
diante das câmeras) e não responder. Mas a pergunta pressupõe que existe uma
resposta, que existe a questão; que existe, na multidão silenciosa que o repórter
representa, a necessidade de ficar sabendo.
E não me refiro às perguntas sensacionalistas dos
escândalos miúdos, das pegadinhas onde são feitas perguntas infantilóides,
canalhamente indiscretas, perguntas que não passam de fofocas ou maledicências
encomendadas.
São perguntas como (me deem licença para um exemplo
provinciano) o jornalista Chico Maria fazia no seu programa “Confidencial” da
TV Borborema de Campina Grande, olhando nos olhos do ex-prefeito Plínio Lemos e
perguntando: “Por que o senhor mandou matar o vereador Félix Araújo?”, ou para
Luís Carlos Prestes, e dizer: “Por que o senhor apertou a mão de Getúlio
Vargas, que entregou sua esposa Olga Benário aos nazistas?”. (Ver aqui: http://mundofantasmo.blogspot.com.br/2009/06/1123-confidencial-20102006.html).
É a pergunta feita de pessoa para pessoa – o respondedor carregando
consigo o peso do passado, e o perguntador trazendo o peso do presente. A
pergunta (agora num exemplo em escala nacional) da escola de Joel Silveira,
mestre de Geneton, repórter batedor de perna na calçada, questionador,
atrabiliário, pavio curto, cuja frase era uma guilhotina.
E, curiosamente, no trato pessoal Geneton desmentia a
imagem de enfezado que passava num primeiro contato, porque era meio retraído e
sempre afável, discreto como um verdadeiro cineclubista, um “prestador de
atenção” na expressão de Jessier Quirino. Tinha o humor escarninho do
recifense, mas nunca se alterava. Entrevistando,
era incisivo sem ser hostil, mesmo quando a gente sabia que ele não gostava do
entrevistado.
O lado cinéfilo era o outro prato da balança que o fazia
escapar das tentações do “furo de reportagem” como valor absoluto. O amor à
Arte equilibrava nele o amor à Verdade. Feliz de quem (principalmente quem tem talento
e/ou poder) consegue equilibrar Arte e Verdade, essas duas coisas aparentemente
próximas, e na prática incomensuravelmente distantes, e em última análise
apenas duas faces de uma coisa maior que ninguém enxerga.
Dos trabalhos de Geneton nos últimos anos vi apenas seu
documentário sobre o tropicalismo, Canções
do Exílio (comentei aqui: http://mundofantasmo.blogspot.com.br/2011/02/2481-labareda-que-lambeu-tudo.html),
e sua longa entrevista com Geraldo Vandré (aqui: http://mundofantasmo.blogspot.com.br/2010/10/2364-entrevista-de-vandre-4102010.html).
Pesco aqui um trecho de um longo post de Sérgio Rodrigues
no Facebook, citando Geneton: “Não existe assunto desinteressante: o que existe
é jornalista desinteressado.“ Vale para a literatura, vale para tudo.
Um comentário:
Lindo, relevante, esclarecedor artigo e homenagem ( fiquei curiosa:quem era Augusto Santa Cruz? )
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