(foto: Diego Martins)
Quando
vai se reduzindo o bradar das cornetas e das buzinas, o espoucar dos fogos, o
estalo dos rojões, uma brecha de silêncio espreita o sono noturno da cidade,
onde nunca existe silêncio completo. E aquele rumor distante então retorna,
como o sol brilhando por trás do céu enevoado. Aquele som antigo que nos corrói
a alma como uma corrente de água gelada. Quantos já foram embora daqui por não
aguentar mais o alarido desse sofrimento anônimo e sem rosto. Ruas inteiras de
casas fechadas, prédios abandonados com um X de tábuas em cada janela, bairros
onde o mato já toma conta. Rumaram todos com sacos às costas ou malas na cabeça
para a rodoviária, para a estação do trem ou para a estrada apinhada de
carroças, migrando, fugindo, deixando para trás a cidade das noites insones, das
noites atravessadas com o coração em frangalhos e os ouvidos tapados com
algodão inútil.
Alguém
dirá: Ir embora?! Mas que preço barato a se pagar, em troca da paz, do
silêncio, do sono de janelas escancaradas, do passeio a pé madrugada afora.
Sim, mas aqui só ficam mesmo os que já nasceram ouvindo esses gritos, e que,
por mais que chorassem por eles e fossem punidos por não suportá-los, acabaram
aceitando-os, tornando-se deles, tornando-os parte de si.
Eles
variam. Ou é uma voz de homem sofrendo uma dor intensa ou uma voz de mulher
idosa lamentando uma dor antiga. Crianças infelicitadas por gente sem coração.
Uma multidão, durante horas, rugindo de terror diante de algo gigantesco e
indecifrável, ou a voz abafada, lamuriosa, de alguém que pedia, pedia uma
coisa, uma coisa que ninguém no mundo tinha condições de lhe dar. Cada noite um contracanto e um cânon de vozes
diferentes, cada qual se erguendo na escuridão como uma navalha, cortando
devagar a carne da alma.
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