quarta-feira, 20 de julho de 2011

2613) A criação através de um erro (20.7.2011)




O erro é muitas vezes um auxiliar da criação, porque nos leva a dizer ou fazer coisas que normalmente jamais nos ocorreriam. 

Nem todo erro é criativo e talvez a imensa maioria deles seja uma simples atrapalhação que é preciso voltar atrás e corrigir; mas cabe a quem cria estar atento para as colaborações do Acaso, e saber incorporá-las quando vale a pena. 

Um engano trazido pelo Acaso pode fazer surgir uma informação nova, enigmática, inquietante, num lugar onde antes havia apenas um obeso Lugar Comum, bocejando e lixando as unhas.

Reza a lenda que William Burroughs estava em Tânger enviando para seus amigos Jack Kerouac e Allen Ginsberg, pelo correio, os fragmentos de textos que iriam compor seu primeiro romance. Quando terminou, fez uma ligação internacional para os EUA para conversar com Kerouac, e pediu-lhe uma sugestão para o nome do livro. A ligação estava péssima; Kerouac sugeriu Naked Lust, “Luxúria Nua”. Burroughs entendeu Naked Lunch, e o livro tornou-se famoso até hoje como “Almoço Nu”. 

Depois, pressionado para explicar à imprensa (esta loura de microfone em punho, sempre carente de explicações) o significado do título, disse: “Significa aquele momento, congelado no tempo, em que todo mundo enxerga o que está na extremidade de cada garfo”.

Muitas vezes o erro é de leitura feita às pressas e resulta numa frase diferente da que de fato estava impressa. Uma vez, procurando algum livro na minha estante, vislumbrei de relance um título numa lombada, A Borboleta é a Morte. Fiquei intrigado, porque não me lembrava de ter nenhum livro assim chamado. 

Durante alguns segundos imaginei um romance policial, talvez de Dorothy Sayers ou de Celia Fremlin, em que uma misteriosa borboleta funcionaria como ameaça de morte iminente ou como pista provocativa deixada por um assassino. Ledo engano! Era o saboroso livro de Alberto Manguel, A Biblioteca à Noite.

Uma vez eu ia de ônibus por uma rua qualquer quando vi, pichado num muro: “Desajuste ama”. Achei parecido com certas pichações que a rapaziada fazia em Olinda anos atrás, como “Se você me ama, deixe um recado na cama”. 

Fui em frente. Dias depois, no mesmo ônibus, na mesma rua, lembrei e resolvi conferir. Ah, que anticlímax. A frase era apenas “Jesus te ama”.

Eu vinha num carro com uma turma de amigos e ao passar diante de uma igreja um deles comentou: “Que coisa esquisita nessa igreja! Missa dos Infernos!”. Tive uma visão fugaz de um ritual satanista, cruzes invertidas, imagens de Belzebu. Sosseguei apenas quando olhei pela janela do carro e pude ver que se tratava apenas da “Missa dos Enfermos”, celebrada ali periodicamente. 

Igual alívio senti quando meu filho leu num muro: “Mercenários - Armados”, e depois percebeu que era apenas “Marceneiros – Armários”. Às vezes entrevemos uma palavra que nos é pouco familiar, e nossa tendência é ver, no lugar dela, uma palavra mais freqüente no nosso repertório do dia-a-dia.





4 comentários:

Alexandre Soma disse...

Estava conversando por esses dias sobre essa coisa indissociável que é a mente e suas experiências. Por anos venho pensando nessa coisas quântica do ser + mente + espaço + percepção + tempo e que no emaranhado dessas combinações infinitas e inimagináveis está o que achamos ser realidade, que é única e exclusiva apenas nossa. Ao que parece uma mesma coisa pode ser decodificada de um jeito particular a cada pessoa, mesmo as mais insignificantes como uma tampinha de refrigerante amassada ou uma mensagem pichada no muro.

Octavio Aragão disse...

E quando ouvimos algo completamente diferente? Algo como um telefone sem fio? Agora que O Astro voltou à TV, recordo de um trecho de Aldir Blanc na letra da canção de abertura da novela que me soava surrealista ao extremo e lindo: “nasce o romper da alma”. Eu ficava ali, assombrado pelo romper da alma tal qual uma aurora mítica e transcendente que se romperia como um nascer do sol. Lêdo engodo. Era “Na Slopper da alma”, que apesar de poético, não me soa tão profundo (e até ficou datado pacas).

heliojesuino disse...

Em pintura, frequentemente são benvindos.Chego a evocá-los ás vêzes quando a" obesidade bocejante doLugar Comum " instalasse no pedaço.
Nada como uma bússola quebrada para mostrar-nos novos territórios.

Cabral que o diga...

Anônimo disse...

esperando distraída pra atravessar a rua, avisto um ônibus que, pelo letreiro, vai em direção ao trauma. mas era só uma localidade chamada Tarumã.
pra uma terça de carnaval, só o frevo explica.