sexta-feira, 21 de agosto de 2009

1211) O encantamento da fala (30.1.2007)




Em seu romance Misery, Stephen King conta a história de Paul Sheldon, um escritor de sucesso que se recolhe numa casa de campo para terminar um romance. Com o livro pronto, ele sofre um acidente de carro e é salvo, numa dessas coincidências inevitáveis da literatura, por Annie, uma de suas fãs mais radicais. 

Annie mal consegue acreditar na própria sorte: ali está ela, salvando seu ídolo, que está com as pernas quebradas! Quando Sheldon volta a si, os dois começam a conversar, ele lhe mostra o manuscrito do livro novo, mas Annie fica chocada ao saber que o desfecho não é o que ela esperava. (O livro conclui uma série, com personagens já conhecidos) 

Ela exige de Sheldon que termine o livro do jeito que ela quer. E os argumentos físicos que usa são vigorosos, dolorosos, cruéis.

Não li o livro, mas vi o filme de Rob Reiner. Os livros de King passam bem para a tela, ainda mais neste caso, em que os atores são Kathy Bates e James Caan. Sheldon vê-se forçado a escrever sob as ordens de Annie, refazendo o livro inteiro de acordo com o gosto dela, e procurando ganhar tempo até que alguém descubra o que aconteceu e venha salvá-lo. 

Como Sherazade, o autor de Misery tem que contar interminavelmente uma história para salvar a própria vida, vivendo a situação paradoxal de não poder interromper a narrativa nem poder terminar a história, para não morrer. (Porque Annie, depois de algumas tentativas de fuga de Paul, decretou que ele não sairá dali vivo).

Como Penélope, na Odisséia, Sheldon finge que está adiantando um trabalho mas, sabendo que concluí-lo é perigoso, passa a sabotar sua própria atividade. 

E o poder meio encantatório que ele tem sobre Annie, sua carcereira e carrasca, parece um pouco com aquelas flautinhas ou rabecas mágicas dos contos folclóricos: o herói toca o instrumento ao ser atacado por dragões ou guerreiros, e põe os atacantes para dançar sem parar. O problema é que ele também precisa tocar sem parar, porque no momento em que fizer uma pausa o dragão ou os guerreiros vão fazê-lo em pedacinhos.

Será que Stephen King tem consciência da persistência da memória oral, desses contos populares com mil anos de idade, nos romances que escreve? 

Pode ser. King não é inculto nem “naïf”. Suas entrevistas são articuladas e interessantes, e seu livro Dança Macabra, sobre a evolução da história de terror na literatura e no cinema, é impecável, mostrando um sujeito que sabe ir direto ao que importa, numa história. 

King não é um estilista, não é um literato, não é um pensador. Tem uma imaginação mórbida e doentia demais para meu gosto. Mas é um animal literário, no sentido de ser um contador de histórias nato, aquele que, no instante do arrebatamento criativo, faz com que brotem dentro de si imagens e histórias que ele pensa serem criações suas, e o leitor também, mas que são apenas testemunhos do quanto o nosso Inconsciente é coletivo, e é quem manda na literatura popular.





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