terça-feira, 31 de março de 2009

0930) O duelo de honra (10.3.2006)



O duelo de honra é uma nobre instituição da civilização européia. Deve ter tido origem ali pela Idade Média mas avançou pela Renascença adentro e até pouco tempo atrás, nos anos 1800, era largamente praticado pelos homens mais esclarecidos do Continente. O duelo se baseia no conceito abstrato de que cada indivíduo é detentor de uma honra pessoal – um conjunto de atributos que, por assim dizer, determinam a cotação de sua masculinidade e da sua respeitabilidade no mercado das relações sociais. E quando essa honra é ofendida tem que ser lavada com sangue.

Quando eu era garoto, o guri que levasse uma tapa na cara e não reagisse é porque era “viado”. O cara levava uma tapa, reagia, e aí levava a surra completa; voltava do recreio com o nariz sangrando e alguns dentes moles, mas cercado do respeito (e ouso dizer da inveja) do resto da classe. Na aristocracia francesa não era muito diferente. Ser esbofeteado era a maior das ignomínias. (Já vi num romance uma bizantina discussão sobre que tipo de tapa era mais ofensivo: com a palma, ou com as costas da mão?) O sujeito que levasse uma tapa tinha uma única frase a dizer: “Em guarda, senhor!” – puxando a espada, e intimando o desafeto a fazer o mesmo.

O duelo passou a ter regras. A frase virou: “Minhas testemunhas o procurarão!” Porque o duelo não podia ser ali, no quente da hora. Ficava automaticamente marcado para a manhã seguinte, e cada duelista levava duas testemunhas para garantir a lisura do encontro e para depois explicar às autoridades o que tinha acontecido. (O sujeito sair de casa pra morrer já é ruim. Imagine ter que fazer isso à 5 da matina.) Como em tudo que envolve a violência, esse processo foi sendo diluído através de uma ritualização simbólica cada vez maior. Para se desafiar alguém a um duelo, não era mais preciso esbofeteá-lo: bastava descalçar a luva e arremessá-la em seu rosto. Depois, bastava atirar a luva aos pés do desafiado.

Paralelamente, a violência do próprio duelo foi sendo esvaziada. Em alguma época foi determinado que para “lavar a honra” não era preciso mais matar o adversário, e foi criado o conceito de “primeiro sangue”. Quando o primeiro sangue (ou seja, um ferimento leve) fosse derramado, o duelo era interrompido e as exigências da honra eram declaradas oficialmente satisfeitas. Já vi romances em que bastava o “cruzar ferros”, ou seja, bastava o primeiro choque entre as espadas, para que a honra estivesse satisfeita. Nesse processo parece ter predominado a tendência de ritualização da violência, que deixa de ser luta mortal e se transforma em mera coreografia (ver “O Sol de Austerlitz”, 15.12.2005). A forma mais civilizada de eliminar a violência não é reprimi-la. É esvaziá-la, transformá-la em ritual, em esporte (o duelo virou esgrima olímpica, a capoeira virou dança ou esporte). Quanto à honra... bem, um conceito apenas simbólico pode muito bem ser defendido por meios meramente retóricos, por que não?

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