terça-feira, 31 de março de 2009

0933) Rumo ao hexa (14.3.2006)



Em 2001, durante as eliminatórias sul-americanas, a Argentina era um time quase imbatível, que dava gosto ver jogar. Eu morria de inveja, porque nossa Seleção se arrastava em campo, pagando micos históricos e exibindo um futebol constrangedor. Só se classificou (acho) devido àquele gol de Marcelinho Paraíba no Paraguai. Em 2002, na Copa, foi o contrário, como todo mundo viu.

Agora, a coisa se inverte. Depois da Copa América, da Copa das Confederações e das eliminatórias, o Brasil entrou no clima do já-ganhou. A Argentina está lá embaixo, a Alemanha também (as ameaças, salvo as inevitáveis surpresas, são França, Itália, Inglaterra e Holanda). O problema é que na hora em que os times entram em campo, nada disso conta. Como dizia Guimarães Rosa, entre os jagunços o que conta “é o peso seco da pessoa”. Ou seja: a pessoa pelo que é, sem títulos, sem currículos, sem históricos, sem elogios da imprensa. Onze contra onze, como o futebol deveria ser.

Planejo escrever um conto de ficção científica ambientado num futuro próximo, quando a pressão da mídia e do comercialismo se tornam insuportáveis, e os times precisam dar um jeito para evitar que seus craques entrem em parafuso na véspera das competições. Vejam o que tem acontecido com Ronaldo, por exemplo. São as críticas da imprensa, a perseguição da torcida do Real Madrid, as críticas de gente importante como Platini ou Pelé... Na hora em que o juiz faz “pí” e a bola rola, é difícil tirar essas coisas todas da mente. Também não é fácil tirar da mente o valor dos contratos de publicidade (mais da metade do que um craque fatura), que dependem do desempenho, até mais do que os contratos esportivos.

Foi devido a isso que, no futuro, os grandes clubes desenvolveram um tratamento psicológico que mistura condicionamento neurolinguístico, hipnotismo e lavagem cerebral. Na manhã das partidas decisivas, a equipe inteira é submetida a uma varredura mental que lhes provoca uma amnésia parcial durante algumas horas. Durante esse período o atleta mantém uma memória seletiva. Ela continua a lembrar quem é, onde joga, quem é o adversário, as características dos seus companheiros de equipe e dos jogadores adversários. Mas ele esquece todos os “fatores extra-campo” citados acima. Ele entra para disputar o jogo pensando apenas no jogo.

Na hora em que a bola rolasse, Ronaldo e os demais saberiam apenas que era um jogo de Copa do Mundo, e que era preciso arrasar a Croácia, arrasar a Austrália, arrasar o Japão (mal saberiam quem era o técnico do Japão). O futebol se veria reduzido ao essencial, 22 jogadores e uma bola, sem Nike, sem Adidas, sem Tim, sem Ambev, sem os cartolas, sem as modelos, sem as capas de revista, sem a adulação interesseira da imprensa e dos políticos, sem milhões de euros ou de reais. Para isto serve a ficção científica: para sonhar sonhos que, tecnicamente, não são impossíveis de concretizar.

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