sábado, 13 de dezembro de 2008

0663) Romário, o Cobra (4.5.2005)



Para Johan Cruyff ele era o deus da grande área; para a imprensa carioca era o baixinho marrento. Vi-o surgir no Vasco, fazendo uma insuperável dupla-de-frente com Roberto Dinamite. Ao que parece, nunca foram amigos, mas dentro de campo enchiam a rede de bolas, e ainda hoje fico perplexo em ver Roberto ser omitido na lista dos grandes parceiros de Romário.

Dizem que sua melhor fase foi no PSV e no Barcelona, onde ficou famoso por prometer (e cumprir) “tripletas”, que é como os espanhóis chamam três gols num jogo só (os ingleses chamam de “hat trick”). Uma vez vi um especial de TV mostrando 20 ou 30 gols de Romário com a camisa desses dois clubes, e a minha noção do que pode acontecer num campo de futebol foi consideravelmente expandida. Romário aliava habilidade com a bola, malandragem e força física. Todo mundo elogia as arrancadas e o vigor de Ronaldo e de Adriano (do Inter de Milão). Comparados a Romário, são dois “chapeados”. Romário era baixinho, mas tinha arrancada, impulsão e vigor físico proporcionais ao desses dois.

E a rapidez de raciocínio. No famoso jogo de 2x0 no Uruguai pelas Eliminatórias, um comentarista da Globo fez uma descrição perfeita: “Quando a bola chega nele, ele já está com a jogada toda pronta na cabeça”. Como o bom enxadrista, o grande jogador está sempre uma jogada à frente do adversário. Isto num futebol onde a imensa maioria dos jogadores espera a bola chegar aos seus pés para começar a pensar o que fazer com ela. Quando a bola chega em Romário, é como clicar “Play”: a jogada se desenrola sem um erro, até a bola na rede.

Uma frase dita num entrevista recente o define muito bem. “Não gosto dessa história de concentração, treino, viagem, entrevista... Futebol pra mim é quando o juiz faz ‘pí’, e a bola rola.” Com a bola rolando, Romário era Picasso e Jimi Hendrix. Fora de campo, fez muita besteira, mas muitas de suas polêmicas surgiram por bater de frente com quem o esnobava, ou com aliados momentâneos que pretendiam botá-lo embaixo da asa: políticos, jornalistas, cartolas. Uma vez chegou para gravar um comercial onde haveria uma pelada. Havia 21 atores contratados para jogar com ele. Ele mandou dispensar: “Só faço se for com meus peixes”. Tinha trazido 21 malandros da Vila da Penha. Adivinha quem jogou com ele no comercial.

Numa decisão Fla x Grêmio pela Copa do Brasil, estava quase caído no chão e fez um gol de cabeça que foi para mim sua jogada emblemática. Era o bote de uma cobra. Romário tem o olho penetrante de um ofídio, o mesmo sangue frio, a mesma força e elasticidade concentradas. Tem uma poderosa economia de gestos e movimentos em que todos os músculos e nervos são mobilizados em um instante, e não se queima uma só caloria desnecessária. É como uma cascavel: uma flecha capaz de disparar a si própria quando surge o vislumbre da fração de segundo ideal. O futebol lhe deve muitos anos de arte, carisma e impiedosa sinceridade.

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