O sucesso da trilogia fílmica O Senhor dos Anéis (2001-02-03 ) de Peter Jackson enfiou esse
conceito trilógico no juízo das pessoas, como se fosse uma verruma. Ninguém
fala mais: “Vou escrever um romance”. Romance é para os fracos. É só “vou escrever
uma trilogia”.
Pra que tanta pressa? Custa nada escrever um livro, para
confirmar que pode, e depois “alçar mais altos voos”, como diria o poeta? Uma
coisa que sempre questionei foi o fato de que trilogia não é um conceito
literário (como “romance” ou “conto”), mas editorial. É uma forma de publicar
obras de ficção muito longas.
E as trilogias não surgiram com Tolkien – que se irritou
muito com seus editores quando estes sugeriram publicar Lord of the Rings em três volumes. Ele queria um livro só, porque
assim foi concebido. Os editores explicaram que o livro tinha cerca de 1.500
páginas, ficaria muito grande e muito caro. Por outro lado, a estrutura
narrativa interna comportava uma divisão em três partes bastante nitidas.
Tolkien concordou, com a condição de que os livros saíssem com uns seis meses
de intervalo, o que aconteceu. Foi a decisão mais acertada.
Aliás, trilogia não é o único modelo, porque na
literatura mainstream temos o “Quarteto de Alexandria” de Lawrence Durrell (Justine, 1957; Balthazar, 1958; Mountolive,
1968; Clea, 1960), e na FC temos a
insuperável decalogia Missão: Terra (1985-1987,
dez livros, com cerca de 4 mil páginas ao todo).
Robert J. Sawyer, um autor canadense talentoso e
premiado, é meio que um especialista nessas séries caudalosas. E tem uma
interpretação interessante a respeito, numa entrevista à Locus (#600, janeiro 2011).
Diz ele que existe a trilogia próxima ao caso de Tolkien,
a que nasce de uma única história que acaba se estendendo demais, o que
dificulta a publicação num só volume. No caso dele, Sawyer fornece como exemplo
sua trilogia “WWW”, em que uma garota cega recebe implantes que lhe permitem
“ver” por dentro a World Wide Web. Os três volumes são Wake (2009), Watch (2010)
e Wonder (2011).
Diz Sawyer (trad. BT):
Vistos em conjunto, penso neles como um só romance. Lembro de tudo que
acontece ali, mas é preciso um esforço real, de minha parte, para saber em que
ponto específico, de qual livro, algum fato ocorre. Se o público teve alguma
queixa a respeito de Wake, a reclamação mais frequente foi de que há
linhas narrativas que não foram devidamente encerradas. Todas se encerraram no
final de Wonder – e de uma maneira espetacular, eu acho!
Existe um segundo tipo, para Sawyer. São três livros
diferentes, mas que formam uma espécie de tríptico, de conjunto que se
complementa de forma harmoniosa. Ele dá como xemplo sua trilogia conhecida como
“The Neanderthal Parallax”, onde ele narra o contato de um grupo de cientistas
com uma realidade paralela onde os homens de Neanderthal se desenvolveram e
criaram uma civilização análoga à nossa. Os três volumes são Hominids (2002), Humans (2003) e Hybrids (2003).
São narrativas que envolvem uma complexa comparação entre
sistemas sociais parecidos e diferentes – duas humanidades evoluindo ao longo
de linhas que divergem em alguns pontos e convergem em outros, suscitando
questões antropológicas, filosóficas, biológicas, religiosas, etc.
Diz ele:
Num caso assim, você escreve um livro em que um habitante desse mundo
vem até o nosso; depois um livro onde um de nós vai visitar o mundo dele, e por
fim um livro em que uma co-existência entre os dois mundos se desenvolve de
forma estável. Isto produz uma trilogia natural.
Não li nenhum destes romances, e estou me baseando apenas
nas declarações do autor. Creio que para descrever de forma mais precisa essa
idéia dele – a de um triptico, três histórias diferentes formando um conjunto
temático – seria preciso haver diferenças significativas de livro para livro,
para que a obra não se tornasse um mero “livrão” dividido em três pedaços. Três
elencos distintos de personagens principais, por exemplo, ajudariam a dar a
cada livro esse tipo de autonomia narrativa, mas não sei se é o caso.
O terceiro tipo, segundo Sawyer, é uma espécie de
trilogia involuntária. Diz ele:
Neste caso, você escreve um livro que faz muito sucesso. Aí, recebe a
encomenda de uma continuação, que também faz um sucesso muito grande. Aí você escreve
um terceiro livro e avisa: “Pra mim, chega”.
Sawyer cita, a este propósito, sua trilogia chamada “The
Quintaglio Ascension”, composta pelos livros Far-Seer (1992), Fossil
Hunter (1993) e Foreigner (1994).
A premissa, bastante ousada, é de que em tempos remotos uma civilização
alienígena transportou dinossauros terrestres para um planeta remoto com
condições físicas semelhante à Terra, e ali os dinossauros desenvolveram
inteligência, cultura, tecnologia e ciência – a série, inclusive cria
equivalentes sáurios a Galileu Galilei, Isaac Newton e Sigmund Freud.
No caso da trilogia involuntária, há que considerar que
no primeiro volume o autor teve que proceder a uma “construção de um mundo”
cheia de detalhes, exigindo pesquisas, etc., e de certa forma, mesmo sem
querer, isso deixava meio caminho andado para um volume dois e um volume três.
O alicerce já estava assentado. Isto não é a mesma coisa, contudo, do que
sentar e preparar três resumos longos e detalhados para os volumes 1, 2 e 3 de
uma série – o que seria o segundo exemplo.
Séries de romances oscilam entre esses três modelos
sugeridos por Sawyer, que tem a seu favor a longa experiência prática.
Se pegarmos uma série famosa de FC, o “Book of the New
Sun” de Gene Wolfe (quatro livros publicados entre 1980 e 1983), vemos aí o
modelo tolkieniano perfeito, porque trata-se de uma única história, narrando o
percurso de vida e amadurecimento de um personagem central, Severian, que
evolui de aprendiz de torturador (no livro 1) até Autarca do Império (no volume
4). Não são livros que possam ser lidos fora de ordem, ou isoladamente. É uma
história só, inteira, contínua.
Tentei pensar num exemplo de “tríptico”. Me ocorreu que o
próprio Gene Wolfe tem uma obra modelar, se considerarmos “uma trilogia de
noveletas”. The Fifth Head of Cerberus (1972)
é um livro com três noveletas diferentíssimas, mas compartilhando o mesmo
universo, e ao ler cada uma delas a gente tem revelações essenciais sobre o
enredo e o significado das outras duas. Se alguém fizer isso com três romances...
É mais ou menos o que Jeff VanderMeer fez em sua trilogia
“Comando Sul” (Southern Reach), que traduzi para a Ed. Intrínseca sob os
títulos Aniquilação, Autoridade e Aceitação. Três histórias em torno de um mesmo fenômeno espantoso
(uma visitação alienígena no litoral da Flórida), onde os personagens se
repetem, mas há várias mudanças de ponto de vista, e cada livro esclarece
coisas que estão ausentes dos demais.
Aliás, é interessante o viés editorial que faz os autores
darem as mesmas letras iniciais para os diversos livros – uma estratégia de
“recall”, fazendo o leitor associar com rapidez os volumes uns aos outros (e
correr pra comprar o que falta).
William Gibson, o inventor do cyberpunk, já tem na estante umas três ou quatro trilogias com um
perfil diferente. A primeira e mais famosa tem Neuromancer (1984), Count
Zero (1986) e Mona Lisa Overdrive (1988),
que pode, sim, ser considerada um tríptico, porque são três histórias cronologicamente
sucessivas, onde alguns personagens se repetem, mas cada uma delas se conclui
satisfatoriamente. Não é necessário ler o que vem depois – embora essa leitura,
claro, acabe iluminando certos aspectos do que foi contado no livro anterior.
No Brasil, temos um exemplo de trilogia de FC talvez não
planejada. Jorge Luiz Calife publicou em 1985 seu Padrões de Contato, depois que Arthur C. Clarkle lhe agradeceu
publicamente por algumas idéias para escrever 2010, sequência de 2001, uma
Odisséia no Espaço. Na época, Calife enfrentava três preconceitos, como ele
mesmo relata com bom humor: era brasileiro, era desconhecido, e escrevia FC. Ou
seja, não havia a menor garantia de que viesse a publicar um segundo livro, mas
publicou (Horizonte de Eventos, 1986).
As vendas devem ter sido o pinga-pinga habitual de todos nós da FC brasileira;
mas anos depois ele fechou a trilogia com Linha
Terminal (1991), pela Ed. GRD. A trilogia saiu completa num só volume, pela
Devir (SP).
Em princípio, não há nenhum mérito ou demérito especial
em conceber uma narrativa em três partes sucessivas (ou quantas forem) a serem
publicadas independentemente. O problema surge apenas quando criação literária
e projeto editorial entram em conflito, e isto pode ocorrer de mil maneiras.
No caso de uma “trilogia involuntária” pode ocorrer o
caso de dois romances bem sucedidos, mas auto-suficientes, obrigarem um autor
já sem novas idéias a esticar num terceiro livro uma narrativa que não tinha
mais para onde ir.
Pode ocorrer também que uma trilogia planejada e
anunciada publicamente no primeiro volume acabe se interrompendo porque o autor
enveredou numa crise criativa, questionou a validade do projeto original e
decidiu começar do zero um projeto novo. Foi o caso de Ariano Suassuna com o
seu ciclo da “Pedra do Reino”.
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