quinta-feira, 4 de março de 2021

4680) Crise é sinônimo de lucro (4.2.2021)



Uma amiga minha, metade francesa metade paraibana, me disse uma vez que viajar pelo Nordeste é fazer uma viagem no tempo. A pessoa desembarca em João Pessoa, e está no tempo presente. Pega um carro, segue pela BR-230 rumo ao sertão, e a cada trecho vai se sentindo na década de 1960, na década de 1930, no século XIX...
 
Como toda fala que sintetiza uma situação complexa, é um exagero, e é uma verdade evidente. Temos uma tendência a pregar bandeirinhas cronológicas em certo tipo de tecnologia, de comportamento humano, de legislação pública. Famílias que tentam se perpetuar no poder? Estamos na era da monarquia! Execuções sumárias e tolerância à tortura? Estamos na Idade Média! Homens que espancam mulheres? Estamos na Idade da Pedra! Espaçonaves robóticas desembarcando em Marte? Estamos no futuro.
 
Na vida real, tudo isso coexiste aos trancos e barrancos – e sempre foi assim.
 
Cinema, literatura, etc. nos permitem contar histórias em que momentos que consideramos “típicos dos dias de hoje” surgem em filmes feitos 50 ou 100 anos atrás, em livros escritos 200 ou 300 anos atrás.
 
Temos uma tendência a ver o passado como uma coisa estática, presa num só formato. Vendo a foto de uma nuvem, imaginamos, sem pensar muito, que a nuvem era daquele jeito o tempo todo. Quando vemos um filme de vikings, pensamos que o mundo deles era daquele jeito o tempo todo.
 
Mesmo quando o cinema nos mostra um conflito, é um conflito que parece estático. É um movimento, mas um movimento que não avança, como o movimento de um jogo de fliperama ou de um totó-bola, onde tudo se agita muito mas dentro de um retângulo rígido de limitações e invariantes.


(cartaz de Shane em espanhol)

Os Brutos Também Amam (“Shane”, 1953) de George Stevens é, do ponto de vista histórico, um western ilustrando o conflito entre agricultores e criadores de gado. Os agricultores têm a sua terrinha, sua lavoura para subsistência e para um pequeno comércio. Os criadores de gado são a Modernidade, fazem altos investimentos, precisam de muito, mas muito terreno mesmo, para expandir seus rebanhos; e acabam tomando a terra dos agricultores. A época é logo após a Guerra Civil, ou seja, aproximadamente a década de 1870.


O Indomado (“Hud”, 1961) de Martin Ritt é sobre a América de cem anos depois. Ali, no Texas, são os criadores de gado que estão estabelecidos e representam a Tradição. E o petróleo representa a Modernidade. Todo mundo no Texas está vendendo suas terras para as empresas petrolíferas, e há toda uma filmografia sobre essa época de transição. Um grande filme a respeito é Assim Caminha a Humanidade (“Giant”, 1956) de George Stevens, onde a descoberta do petróleo desequilibra relações de poder onde até então mandavam os criadores de gado.

O roteiro (baseado num romance de Larry McMurtry) é de Harriet Frank Jr. e Irving Ravetch. Hud Bannon (Paul Newman) é o mau-caráter charmoso que leva todo mundo na conversa, menos seu pai Homer Bannon, um sertanejo da velha estirpe, que se recusa a permitir a exploração do petróleo porque é um tipo de atividade econômica inconcebível para ele.
 
O que é que eu posso fazer com um punhado de poços de petróleo? Eu não posso cavalgar todo dia por entre eles como faço com meu gado. Não posso ajudá-los a crescer, tratar deles, laçá-los, correr atrás deles... nada. Não posso sentir o menor orgulho por eles, porque eles não são uma coisa feita por mim.
 
O velho fazendeiro (Melvyn Douglas) tem essa percepção “humanista” do trabalho como algo que envolve o esforço humano, a convivência humana (mesmo que seja desumano com o gado), mas em todo caso algo que mobiliza energias, esforço, conhecimento, afetividade. Um trabalho real. Comparado com isso, furar um buraco e puxar um líquido lá do fundo para ganhar milhões de dólares parece uma espécie de prostituição.
 
Eu diria que hoje em dia há muitos industriais produtivos que veem com olhos parecidos o Capitalismo Financeiro, que em grande parte do seu tempo não cria uma bolacha ou um par de sapatos, é apenas dinheiro fictício gerando dinheiro fictício.
 
E não se trata apenas da substituição de atividades econômicas. Existe também uma ética antiga (que chamei mais acima de “sertaneja”) por uma ética moderna. O meio do faroeste já foi movido por uma ética e um código de honra cavalarianos; basta lembrar o famoso “Código de Honra do Cowboy” propagado pelo ator Gene Autry, um documento hoje comovente pelas suas boas intenções e altruísmo.
 
Sobre esse código das antigas instaurou-se o salve-se-quem-puder da Modernidade, a corrida da morte em busca do lucro a qualquer custo.
 
Isso se revela na longa sequência em que Homer Bannon é informado de que todo seu rebanho pode estar com febre aftosa, e que talvez tenha que ser abatido. O que faz Hud Bannon, o filho mau-caráter? Aconselha o velho a passar o rebanho adiante, vendê-lo antes que a notícia se espalhe.


– Pegue o telefone e venda todas as reses. Você ainda não está com as mãos atadas. Posso despachar o rebanho inteiro antes mesmo que comecem os testes.
– Passar adiante uma mercadoria que pode estar estragada, para os meus vizinhos que estão de boa fé?
– Você ainda não tem certeza se está estragada ou não. Posso despachar tudo para o norte antes que a notícia se espalhe.
– E correr o risco de espalhar uma epidemia no país inteiro?
– O país inteiro vive de epidemias. Onde é que você vive?! Epidemia de controle de preços pelas corporações, programas escrotos de TV, trambiques no imposto de renda, relatórios de despesas falsificados... Quantos homens honestos você conhece? Se tirar um pelo outro, só fica Abraham Lincoln.
 
A cena é de 1961, mas estamos em pleno século 21, porque é esta a mentalidade que vigora.


No filme O Dia Antes do Fim – Margin Call (“Margin Call”, 2011) de J. C. Chandor, funcionários de uma grande financeira novaiorquina descobrem que todos os seus papéis estão “bichados”, prestes a perder todo o valor. O CEO (Jeremy Irons) adota a solução proposta por Jared Cohen (Simon Baker): vender, num mutirão de 24 horas ininterruptas, todos os papéis sem valor a investidores desinformados e de boa fé, que não têm como saber que os papéis não valem nada. Cada funcionário receberá um bônus de mais de um milhão de dólares se vender a cota que lhe cabe.
 
O filme se baseia em fatos reais ocorridos na crise de 2008 (“A Crise Que Ainda Não Acabou”) e na atuação das firmas Goldman Sachs e Lehman Brothers. Ou seja: as reses com febre aftosa foram vendidas como reses sadias, e contaminaram o rebanho mundial, ajudando a provocar uma epidemia de falências, crises políticas e, paradoxalmente, a transferência de um poder político cada vez maior para os administradores de empresas assim.


No filme O Terceiro Homem (“The Third Man”, 1949) de Carol Reed, o espertalhão é Harry Lime (Orson Welles), que na Viena destroçada pela II Guerra e sofrendo uma epidemia de meningite dá um jeito de enriquecer vendendo vacinas adulteradas, cuja aplicação não apenas não salva as crianças a que elas se destinam, como acarreta problemas ainda mais graves.
 
Confrontado por seu amigo Holly (Joseph Cotten), no alto da montanha-russa de um parque, Harry Lime mostra a multidão minúscula lá embaixo e diz:
 
– Olha, nunca me senti à vontade com essas coisas. Vítimas? Não seja melodramático. Olhe lá pra baixo. Me diga. Você ficaria mesmo com pena se um daqueles pontinhos ali parasse de se mexer de repente? Se eu lhe oferecesse 20 mil libras por cada pontinho que parasse de se mexer, hein, meu velho, você me diria mesmo que não queria? Ou você ficaria calculando quantos pontinhos daria para poupar?
 
Hud Bannon, Jared Cohen e Harry Lime são a Modernidade, são o Espírito do Tempo, são as forças que movem o mundo de hoje na direção em que ele está indo.
 
 


 
 






3 comentários:

Paulo Rafael disse...

Braulio:

O tradutor piscou para mim. Acabei de ler a sua tradução de "O tempo desconjuntado". Quando o motorista do caminhão tenta convencer Ragle, temos o seguinte: "Converse mais, pensou Ragle consigo mesmo." Gostei demais e me reconheci nesse "converse mais"!

Abração

Flávio Ramalho de Brito disse...

Grande texto. Esse merece ser compartilhado.

Evandro Oliveira disse...

Sensacional, educativo tenho que compartilhar...