Graças às prodigalidades da Internet, assisti estes dias a um filme da minha remota infância, do qual lembrava muito pouco: Trapézio, com Burt Lancaster, Tony Curtis e Gina Lollobrigida. Fiquei sabendo agora que o diretor é o competente Carol Reed, e o ano é 1956.
Trapézio é um dos clássicos do circo no cinema. É aquele filme que faz parte do currículo mínimo obrigatório para quem quiser mergulhar no assunto. Tem uma história de amor um tanto previsível, o triângulo amoroso de sempre, e por trás dela, dando-lhe sustentação, uma história de auto-ajuda igualmente previsível: o indivíduo que vê frustrados seus sonhos de juventude e que à entrada da velhice se resigna a ser o mestre de um aprendiz a quem caberá vencer onde ele foi derrotado.
Mike Ribble (Burt Lancaster) é o trapezista que se acidentou ao tentar o dificílimo salto mortal triplo, e que agora trabalha consertando coisas no circo onde já foi estrela, e onde é querido por todos. Um dia surge-lhe na frente o jovem Tino Orsini (Tony Curtis), talentoso, impetuoso, ousado, que quer-porque-quer aprender o salto triplo, e exige que Mike lhe ensine o que sabe.
Começa uma tensão entre os dois, a tensão gera amizade e confiança, e Mike se dispõe a ensinar tudo ao jovem. Os dois passam a executar números no espetáculo, para satisfação do rotundo Monsieur Bouglione, dono do circo.
Nesse momento intromete-se entre os dois Lola (Gina Lollobrigida), carreirista e ambiciosa, que também é habilidosa no trapézio e quer transformar a dupla em trio.
É o cinemão de Hollywood, circulando com segurança pelos caminhos desbravados na década anterior. Carol Reed tem a vantagem de contar com atores com boa presença física na imagem, porque é uma história de atrações físicas, confrontos sensuais, e façanhas atléticas. A energia pessoal dos atores dá credibilidade a situações românticas bastante clichê.
Burt Lancaster (que revi há poucos meses em dois filmes de Luchino Visconti) faz lembrar neste espetáculo circense a descrição que dele faz David Thomson no Biographical Dictionary of Film, quando o ator (nascido em 1913) já tinha mais de 60 anos: “Lancaster continua a ser um atleta robusto, de sorriso penetrante, mão estendida, mas sempre dando a impressão de que pode nos esmagar os dedos ou nos produzir um choque elétrico”.
O melhor do filme é quando a câmera passeia pelo interior do ambiente circense, mostrando as rebarbas do espetáculo (pois tudo o mais acontece ao fundo dos dramas do trio principal): os números equestres, o encantador de cobras, os balés, os elefantes, os leões... Curiosamente, é um filme de circo sem palhaços.
A locação externa é o Cirque d’Hiver em Paris, aquela construção semi-arredondada que já serviu de sede a muitos grupos da história do espetáculo. As partes mais impressionantes são, é claro, os números de trapézio, uma conjugação impecável de efeitos. A música nesses momentos é geralmente Danúbio Azul, o que me fez lembrar do 2001 de Kubrick e matutar no que há de circense naquela longa sequência do acoplamento entre espaçonave e estação espacial: é quase um número de trapézio em que o “catcher” pega no ar o “flyer”.
A fotografia de Robert Krasker é excelente, inclusive pelo uso hábil da câmera vertical, seja de cima para baixo ou de baixo para cima. Os enquadramentos em Cinemascope, à distância, estabelecem toda a noção de espaço necessária para se ter suspense – já vi cenas de trapézio no cinema em que não existe suspense algum porque a fotografia toda torta e a montagem picotada não permitem o espectador compreender o que está acontecendo. O cinema, em casos específicos assim, precisa dar a idéia intuitiva de distância, movimento, velocidade. Sem isso não tem suspense em função de ação física.
E nesse aspecto, a montagem de Bert Bates é perfeita. E tem também a edição sonora. Após a pirueta aérea o “catcher” pega no ar o “flyer” e a gente ouve o som da batida das mãos se agarrando. Detalhe psicologicamente reconfortante, e dramaturgicamente esclarecedor.
Há detalhes que às vezes batem no ouvido da gente e dão o que pensar. O personagem de Lancaster é Mike Ribble, e seu grande sonho é o “triple” (talvez a palavra mais repetida nos diálogos); as duas palavras me trouxeram ao ouvido, o tempo todo, a sugestão subliminar de “cripple” (aleijado), pois é isso que ele se tornou após a queda.
É interessante, aliás, o modo como o personagem somatiza seus problemas. Quando está otimista, ele nem parece que tem uma perna defeituosa. Quando está abatido, não dá dois passos sem a bengala.
Uma das cenas mais bem concebidas do filme é justamente quando Tino está perplexo com a ausência de Mike e Lola. O público já deduz que os dois passaram o dia juntos. Monsieur Bouglione, impaciente, lhe diz: “Quer saber onde está Mike? É só seguir aquela velhinha que está levando a bengala dele.” E de fato há alguns minutos uma velhinha de preto, toda corcovada, estava passando pra lá e pra cá diante da câmera. Tino vai atrás dela, e chega ao hotel onde Mike e Lola, apaixonados, passaram sua primeira noite de amor. (Tarde, na verdade.)
É um roteiro convencional, com pequenos momentos de sutileza.
É interessante como nossa memória guarda umas coisas, e outras não. Vi esse filme quando tinha oito ou dez anos, e só uma vez. Tinha uma lembrança vaga das cenas de trapézio, da queda, da mão que escorrega, da mão que larga. Tinha a memória (reforçada depois com outros exemplos, certamente) da diferença entre um salto mortal com rede e um salto sem rede. Mas eram lembranças certamente contaminadas pelos vários filmes de circo que vi ao longo da vida.
Há uma cena na parte inicial, quando Mike e Tino começam a se conhecer, em que depois de bate-bocas os dois se veem com simpatia e saem andando à noite, na rua parisiense quase deserta. E Tino planta uma bananeira; Mike se vê de repente conversando com dois pés à altura do seu rosto. Ele dá uma gargalhada, pendura a bengala no pé de Tino, e planta bananeira também; e assim os dois se afastam, caminhando sobre as mãos.
No filme todo, foi a única cena que reconheci instantaneamente, aquela reação imediata de “Eita, isso aqui eu me lembro”. Coisa que menino não esquece.
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