Vi a primeira temporada desta série alemã do Netflix. É uma tentativa de fazer uma série de ficção científica de “grande conceito” – um feixe de idéias ambiciosas exploradas até as últimas consequências – não as últimas propriamente, porque não as há, mas até uma distância segura. E de grande produção também, pois parece uma série cara, tecnicamente muito bem realizada.
Quem não viu ainda mas quer ler este texto pode
ficar tranquilo. Darei uma idéia aproximada da história, mas não darei
spoilers.
É uma história de viagem no tempo, e transcorre
numa pequena cidade alemã, Winden, situada entre uma usina nuclear e uma floresta,
que são os dois ambientes principais. Pessoas desaparecem misteriosamente,
sempre nas proximidades de um sistema de cavernas subterrâneas (a Alemanha é
cheia delas) no meio da floresta. E pessoas estranhas são vistas na cidade o
tempo inteiro, referindo-se a fatos igualmente misteriosos ocorridos três
décadas atrás.
O espectador percebe desde logo que o enredo
envolve viagens no Tempo e os famosos paradoxos temporais, a que todo mundo já
foi exposto desde Back in the Future:
E se você voltasse no Tempo e visse seus pais ainda adolescentes, antes mesmo
de namorarem? E se você voltasse no
Tempo e visse a você mesmo ainda
garoto?
Há duas tendências principais a respeito disso, nos
autores de FC.
Uma delas eu chamo de Os Divergentes: qualquer ação
mínima que se faça pode influenciar o tempo; você pisa numa borboleta e, por
causa da morte dela, o futuro será todo diferente. É uma espécie de
carnavalização do Livre Arbítrio.
A outra eu chamo Os Convergentes: não importa o que
a gente faça, há uma força no Universo que corrige esses pequenos desvios e faz
tudo voltar a acontecer como teria que acontecer mesmo, não adianta espernear.
Uma carnavalização do Determinismo.
Como a série ainda está em progresso (tem as
temporadas 2 e 3 pela frente), ainda não sei o Futuro. Vou comentar outros
aspectos interessantes, não-ciência-ficcionais, da dramaturgia.
Vi amigos meus se queixando de que os personagens
(há várias famílias com protagonistas, a coisa é maior do que Cem Anos de Solidão) são todos
parecidos, e isso atrapalha a gente. Não que sejam parecidos fisicamente. São
pessoas de “astral” sempre igual.
Será que os alemães são todos assim? (Os meus
amigos alemães tinham um pouco disso, mas não tanto.) O povo de Winden é um
povo carrancudo, parece que está com raiva o tempo todo. Adolescentes que
namoram, se abraçam, se beijam, trepam, tudo isso sem um sorriso. Perpassa uma
sombra o tempo todo. (Recomendação da dramaturgia? Pode ser.) Pode ser também o
orvalho radioativo que eles absorvem.
Isso pega mal para uma platéia brasileira, porque
entre nós o sorriso é uma vaselina universal que torna suportável a convivência
humana. Dependemos tanto do sorriso sincero que damos carta-branca ao sorriso
falso. O sorriso de condescendência, o sorriso de escárnio, o sorriso de fúria,
o sorriso de neurose impotente, o sorriso de súplica. Alemão, não. É sério como
um retrato falado feito em delegacia.
Uma das teses da série, como da FC em geral, é a de
que “o Futuro modifica o Passado”. Isso tem um reflexo dramatúrgico muito interessante
no fato de que Winden tem famílias que se conhecem ao longo de décadas, e se
relacionam o tempo todo: os Tiedemann, os Nielsen, os Doppler, os
Kahnwald... E esses relacionamentos
envolvem casamentos, mortes, ódios antigos, namoros, dívidas, perseguições,
alianças, vinganças...
É o velho melodrama de folhetim, as árvores
genealógicas intrincadas que faziam a festa de Balzac, Dickens, Dumas,
etc. Tudo enroscado numa webwork de relacionamentos que daria
vertigem no mestre desse estilo, Harry Stephen Keeler, que se limitou ao
melodrama policial e não se arriscou muito em viagens no tempo.
No melodrama mainstream (leia-se: a telenovela) a gente não volta no tempo fisicamente, mas volta mentalmente o tempo todo. Não
podemos mudar os fatos concretos do passado. Podemos mudar, isto sim, nossa
interpretação deles, com as devidas consequências a partir daí.
Podemos revelar um fato que ninguém sabia. Podemos
reinterpretar um fato que tinha sido
visto de outra forma. Podemos perceber pela primeira vez uma relação entre dois
fatos antigos. Podemos entender por fim (com algum dado novo) um fato que até
agora tinha permanecido inexplicável. Podemos recuperar informações perdidas,
podemos recordar detalhes que tínhamos esquecido.
Isso tem sido, nos últimos 200 anos, a substância
do melodrama, do folhetim literário, da telenovela do horário nobre. O baú do
Passado sendo aberto.
“A estética do Ah Se
Eu Soubesse”:
“A estética do Meu
Passado Me Condena”:
“A estética do Por
Essa Eu Não Esperava”:
A verdade é que os fatos já aconteceram – mas o que
chamamos de “fatos” é o que sabemos a respeito deles. E que pode mudar, com as
revelações bombásticas de qualquer enredo bem bolado.
Grande parte de nossa literatura se baseia nisso: o
que aconteceu no Passado? Capitu traiu, ou não traiu? É um Passado que, em
tese, pode pender para qualquer lado. Em Machado de Assis, um cristão não pode
abrir uma gaveta sem achar uma carta comprometedora, o que faz desmoronar um
castelo com rochas de mil anos.
Dizem os personagens de Dark: “Todo mundo nesta casa tem segredos”. “Você já percebeu que
não conhecemos direito nossos pais, não sabemos como eram eles na infância, na
juventude?”. E agora o aparato da FC
serve a esse tipo de plot.
Dark, por mais que mostre personagens viajando
loucamente para o Passado e para o Futuro, tem algo da tragédia grega de
sempre: pessoas que tentam evitar que algo aconteça e nesse esforço acabam
justamente provocando o que queriam evitar.
(Aqui, meus comentários sobre a Temporada 02):
http://mundofantasmo.blogspot.com/2020/07/4600-dark-temporada-2-1672020.html
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