Vou começar com a coisa que eu detestei na série Dark: aquele insuportável clichê da pessoa que acorda de um pesadelo sentando na cama, arquejante, com os olhos arregalados, a boca aberta. Usar isso uma única vez, pra mim, já é um defeito grave. O diretor usa em praticamente TODOS os episódios da série, às vezes repetindo no mesmo episódio. É um dos clichês mais desgastados da História do Cinema. Como é que isso passa pelas mãos de uma equipe inteira e ninguém questiona?! Não tem perdão.
Esse “macete” de fingir que uma coisa horrível está
acontecendo e depois dizer: “Era só um sonho! Brincadeirinha!” é um erro
elementar. Rarissimamente soma alguma coisa ao filme. Você obriga o espectador
a investir sentimento, impulso emocional, e depois diz que estava mentindo. Nas
próximas, o espectador não acredita, não investe emoção. Mesmo inconscientemente,
ele hesita. Já foi enganado umas, duas, três, quatro, cinco vezes. Pra quer
morder de novo a mesma isca?
Eu dou logo um passo atrás. Fico assistindo da calçada.
Um defeito grave são os diálogos. É quando a gente vê que
falta uma referência de idéias mais ampla. Falta poltrona a esse pessoal, dizia
uma professora minha, para indicar que faltava leitura.
A cada episódio, os personagens repetem uns para os outros a mesma ladainha: “Tudo está interligado: luz e sombra... vida e morte... o fim e o começo...” São banalidades abstratas pomposas, como num livro de auto-ajuda. É por isso que em Hollywood usa-se muitas vezes contratar um cara para escrever o roteiro, e outro para escrever os diálogos. Porque sempre tem gente que só sabe fazer uma das coisas.
Não quero botar um peso muito grande nas costas da
roteirista/criadora Jantje Friese: pelo que vi nas bios, é apenas o segundo
roteiro dela, que antes de Dark tinha
escrito apenas um filme. E cabe a ela, em princípio, o grande mérito da série,
que é a combinação de uma idéia ousada, um desenvolvimento complexo, um
trabalho braçal imenso, absurdo, de manter a continuidade de ação e de
psicologia de 15 ou 20 personagens ao longo de 4 ou 5 ou mais épocas.
É um roteiro corajoso, ambicioso, e que deve ser louvado pelo que tem de bom, numa época em que todo mundo opta pelo feijão-com-arroz e tem medo de arriscar. Jantje Friese não teve medo, quis arriscar. Quando um malabarista está no picadeiro jogando e aparando 10 bolas, e duas ou três caem no chão, a gente tem que aplaudir, sim. Senão, estaríamos até hoje pagando para ver alguém fazer malabarismos com 3 bolas.
Já falei aqui que o erro de Dark foi querer expandir demais a complexidade do enredo, ao invés
de explorar melhor o território (já em si complexo) demarcado na Temporada 01.
Na Temporada 02 já houve um difícil equilíbrio, e na 03 o que tivemos foi uma
dispersão dramática entre uma porção de situações contraditórias que os
personagens tinham que explicar o tempo inteiro uns para os outros – e para o
público.
A série ganhou em complexidade, mas acabou perdendo em
profundidade. A Temporada 03 teve momentos em que parecia que a gente estava
assistindo um storyboard.
Tenho meia dúzia de perguntas mal-respondidas, mas nem
vou tocar nesse assunto aqui. O elenco é quase todo muito bom. O casting, como
já falei, é extraordinário. A direção tira leite de pedra em lidar com as
situações obrigatoriamente repetitivas propostas pelo argumento (um risco muito grande, típico desse tipo de história, e assumido com consciência).
A parte visual é também excelente, e dou uma nota 10 para o design das Máquinas do Tempo, todas elas. Todas têm algo de steampunk, de ciência gótica.
A parte visual é também excelente, e dou uma nota 10 para o design das Máquinas do Tempo, todas elas. Todas têm algo de steampunk, de ciência gótica.
Fico imaginando que o sucesso da primeira temporada
esticou desnecessariamente o restante. Pena que um sucesso semelhante não tivesse
premiado uma das minhas séries preferidas, The
Lost Room (Christopher Leone, 2006), mais misteriosa do que Dark, e que morreu depois de uma
temporada e seis episódios, deixando mil mistérios no ar:
Falei, ao comentar a Temporada 01, que Dark é no fundo mais um folhetim com
dramas de família. E de fato tudo gira em torno de quem casou, quem descasou,
quem traiu, quem nasceu, quem morreu.
E todas essas histórias de Viagem no Tempo, curiosamente,
giram em torno do nosso desejo de mudar o Passado. Ninguém volta ao Passado
para rever os lugares que foram marcantes, como o velhinho seu-lunga do Morangos Silvestres de Bergman. Volta
para interferir, volta para tentar corrigir erros, volta por esse inconformismo
humano de nunca se dar por satisfeito e achar que a vida poderia ter sido
perfeita, impecável, sem um erro sequer.
Ou que a História é uma batalha que ainda não cessou, que
é possível voltar no tempo para matar Hitler ou salvar Abraham Lincoln. E o que
muitas dessas histórias nos mostram é que não adianta. Você volta no Tempo,
corrige um erro, e o erro volta a acontecer. O Universo é teimoso, não quer ser
corrigido.
Como diz uma personagem de Dark: “As coisas podem não
acontecer do mesmo jeito, ou no mesmo tempo, mas acontecem”. Quem traiu com
A, trai agora com B. Quem chantageou C, agora chantageia D. Quem tem o vício X,
está agora com o vício Y. Detalhes assim
só importam para nós; o Universo faz a concessão e segue em frente com seu
tanque Panzer.
Há um conto de Lewis Shiner (“Voodoo Chile”, Asimov Magazine, julho de 1993) em que um fã de rock volta no tempo para evitar que Jimi Hendrix morra, como morreu, engasgado com o próprio vômito após uma noite de farra em Londres. Ele volta. Vai nos bares. Fica amigo de Hendrix, revelando coisas futuras (sem explicar por que) e ganhando a confiança do músico. Na noite fatal, dá um jeito de alguém cuidar de Hendrix. No dia seguinte, Jimi está vivo! Maravilha! Vamos comemorar! Vão beber no bar de sempre e ao saírem, de madrugada, surge do nada um maluco e esvazia um revólver no autor de “If Six Was Nine”.
O que tem de acontecer, como se diz por aí, tem muita
força.
Volto a louvar a roteirista/criadora Jantje Frieser por
uma outra ousadia: a solução final que adota para a “guerra entre dois
universos”. Para solucionar o “nó górdio temporal”, não adianta desatá-lo, é
preciso voltar um pouco mais e cortar tudo, mesmo ao preço de que numerosas
linhas temporais deixem de acontecer. (E ela foca a solução num personagem-chave que estava ali o tempo todo; não é um simples deus ex machina).
É a ousadia assustadora de Isaac Asimov num dos seus
melhores romances, O Fim da Eternidade
(1955). E é diferente do “sustozinho do pesadelo” que critiquei no início.
Investimos nosso envolvimento emocional com personagens cuja vida, afinal de
contas, será apagada. Mas é como dizia Drummond:
“Deixaram de existir, mas o existido
continua a doer eternamente”.
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