Por volta de 1982 eu passei uns meses no Rio de Janeiro, nas
casas de meus amigos, antes de me mudar em definitivo. Numa destas eu estava no
apartamento em que Mestre Fuba morava em Ipanema – como o pai dele vinha ao Rio
com frequência, a trabalho, era cômodo manter um apartamento pequeno, onde o
filho morava e ele se instalava quando vinha.
O filho hospedava também outros trovadores errantes, como
era o meu caso, e numa destas resolvemos fazer um show coletivo. Juntamos uma
turma de cinco: Fuba, Pedro Osmar, Jarbas Mariz, Paulo Machado e eu. Era a
época das “coletivas musicais”, aquelas noitadas longas em que uma longa fila de
cantores-compositores se sucedia no palco.
Começamos a ensaiar o show, que foi marcado para um
espaço na Universidade Santa Úrsula, em Botafogo. Pedro Osmar, o líder do grupo
Jaguaribe Carne, de João Pessoa (de onde surgiram, entre outros, Chico César e
Totonho) era o dínamo propulsor dessa atividade toda. Para mim, “fazer um show”
significava apenas comparecer no dia e cantar algumas músicas escolhidas na
hora, mas Pedro tinha outra concepção. Era preciso organizar, viabilizar,
produzir, divulgar...
Discutíamos muito sobre o nome do show e numa tarde,
depois de uma sessão especialmente acalorada, Pedro Osmar se levantou e disse:
“Amanhã a gente se encontra de novo e não é possível que ninguém tenha um nome
bom!”. Eu respondi, com a modéstia habitual: “Pedro, vá tranquilo, que amanhã
eu vou lhe dar trinta nomes possíveis para esse show.”.
De noite botei o papel na máquina (havia uma máquina de
escrever portátil no apartamento) e fiquei tomando cerveja e inventando
títulos, terapia de descontração mental que aconselho a todo mundo. Quando
estava com 29, deu um branco, e o último não vinha de jeito nenhum. E aí
coloquei, só de zoação: “E se alguém
encostasse o Brasil na parede e pedisse pra ver os documentos?”.
Não deu outra: o nome do show foi esse, e saiu em todos
os jornais.
(À frente: Pedro
Osmar. Atrás, da esquerda para a direita: BT, Fuba, Paulo Machado e Jarbas
Mariz)
É dessa época uma canção que acabou não sendo cantada no
show, por ser muito nova. Lá no apartamento iam de vez em quando nossos amigos
riograndenses-do-norte, da banda Flor de Cactus (não confundir com a banda
homônima recifense, do começo da carreira de Lenine): Babal Galvão, Chico
Guedes, Mingo Araújo, Cláuton “Neguinho” e outros, inclusive o paraibano Alex
Madureira, que tocou com eles durante algum tempo.
Eles estavam se preparando para gravar um LP, seu segundo
disco de carreira (o primeiro foi Pepitas
de Fogo, 1981) e primeiro pela gravadora RCA.
Esta minha letra, musicada por Babal, acabou sendo a
faixa de abertura, e dando nome ao disco.
É um galope-beira-mar, estilo clássico dos cantadores,
com uma variante que eu introduzi, repetindo as duas últimas linhas em cada
estrofe, como se glosasse um mote. (Os cantadores nunca usam galope beira-mar para glosar
mote.)
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YouTube (gravação original Flor de Cactus):
ALICERCE DA
TERRA
Babal /
Braulio Tavares
Meu canto é
quem guia o impulso da onda
e faz o
oceano emitir seu marulho
meu canto
supera do mar o barulho
e faz com
que a tempestade se esconda...
Meu canto é
que exige que o mar lhe responda
e chama a
tormenta pra lhe acompanhar
no dia que
emudecer meu cantar
a própria
garganta das águas se emperra...
E eu faço
tremer o alicerce da terra
cantando galope
na beira do mar
O vento
passando através duma mata
arranca das
árvores suas folhagens
a força de
um rio contido entre margens
liberta-se
quando ele cai em cascata.
Toda
natureza tem a força exata
que leva o
mundo a se transformar
nenhum ser
vivente consegue escapar
à lei
natural que governa e não erra...
E eu faço
tremer o alicerce da terra
cantando galope
na beira do mar
Se um dia
você passeando na praia
ouvir um
concerto solene e profundo
como se
houvesse no ventre do mundo
uma
orquestra que lá se oculta e ensaia,
você feche
os olhos, se benza e caia
de joelhos
na areia e comece a rezar,
pois quando
essa voz principia a soar
nos céus e no
inferno um portão se descerra...
Sou eu
abalando o alicerce da terra
cantando galope
na beira do mar
O mar é um
cofre de imensos segredos
naufrágios,
tormentas, batalhas e dores
desastres,
mistérios, miragens, terrores
sepulcros,
cavernas, abismos e medos...
A terra é
uma arena de tristes degredos
miséria,
doença, infortúnio e penar
maldade,
violência, tortura e azar
cobiça,
traição, assassínios e guerra...
E eu faço
tremer o alicerce da terra
cantando galope
na beira do mar
2 comentários:
Só um detalhe esse LP alicerce da terra é o terceiro da banda flor de cactus 1982, Intercnicolor 1980 pepitas de fogo 1981.
Obrigado pela dica. Quando fui pesquisar, só achei "Pepitas de Fogo". Fica o registro.
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