(Palácio Monroe, Rio de Janeiro)
Muitos episódios recentes na Paraíba e no Brasil me levam
a pensar nas pessoas que destroem nosso patrimônio cultural, que roubam obras
de arte para vender, que deixam tesouros históricos se estragarem. Quem são
essas pessoas? Por que fazem isto? Decidi tentar agrupá-las em algumas
categorias.
Existe, por exemplo, o *Lucrador Predatório*. É uma
figura típica do capitalismo selvagem que se alastra pelo Brasil como uma
impingem fora de controle. O Capitalismo Selvagem é um processo que age às
cegas, visando apenas o próprio lucro, cada vez maior, cada vez mais rápido. É
diferente do Capitalismo Civilizado, que lucra, produz, enriquece os
acionistas, mas ao mesmo tempo se preocupa com questões sociais, patrocina as
artes, protege o meio ambiente, trata bem os operários.
O Capitalismo Civilizado é prudente, pensa no futuro, faz
as coisas com a intenção de continuar existindo e faturando por séculos a fio.
O Capitalismo Selvagem não: é um inseto predatório, que quer devorar tudo que
aparece à sua frente, e no menor espaço de tempo possível. Destrói tudo que há
à sua volta, e com isto acaba destruindo a si mesmo. Se o deixarem à solta, em
50 anos ele transforma a Amazônia no deserto do Saara, e morre de fome e sede.
O *Lucrador Predatório* é o cara que bota abaixo o prédio
onde um jornal funcionou por 50 anos e faz ali uma farmácia. É o cara que está
fazendo um filme e para filmar uma cena manda serrar uma árvore que já estava
ali quando Pedro Álvares Cabral chegou em Porto Seguro. É o cara que derruba um
chafariz do século 18 para construir uma garagem para sua camionete.
Ele não tem nada específico contra o patrimônio, contra a
memória, a não ser quando eles prejudicam seus interesses. Ele é como um
gafanhoto: quer apenas devorar o que aparece à sua frente.
(Castelo da Prata, Campina Grande)
Um tipo menos sinistro mais igualmente ameaçador é o
*Modernizador Angustiado*. Este, quando destrói alguma coisa antiga, sabe muito
bem o que está fazendo, e faz de propósito. Mas ele faz movido pelo que
considera uma boa intenção.
Em geral ele foi criado numa comunidade muito
conservadora, retrógrada, de mentalidade imobilista. No mundo em que ele
cresceu, coisas novas eram vistas com suspeita. Todo mundo tinha que fazer as
coisas exatamente como seus pais e avós tinham feito. Havia padrões eternos de
comportamento a serem seguidos sem discussão.
Quando esse indivíduo fica adulto, ou consegue algum tipo
de poder, ele começa a combater essa força repressora que o angustiou durante a
vida inteira. Ele está tomado de ressentimento contra tudo que é velho, tudo
que é arcaico, tudo que representa o passado. Ele se deixou seduzir pelas
coisas novas e modernas que viu pelo mundo, ou das quais ouviu falar. Ele quer
fazer com que estas coisas novas tenham uma chance; quer trazer um pouco de ar
puro àquele ambiente tão asfixiado pelo passado, pela eterna repetição das
mesmas coisas.
E nesse impulso ele começa a combater tudo que parece
velharia. Não adianta dizer que tem valor histórico. Para o Modernizador
Angustiado, o mundo já tem História demais, Passado demais. Ele é um fanático
pelo futuro, e para impor o que ele acha ser o futuro é capaz de implodir a
Catedral de Notre Dame ou de aterrar os canais de Veneza.
(Casa Navio, Recife)
Um terceiro tipo, muito curioso, é o *Desinformado
Catastrófico*. Ele destrói sem saber que está destruindo. Muitas vezes por não
ter tido educação, por não ter acesso a informações, ou apenas porque não
prestou muita atenção no que estava fazendo.
É o sujeito que assume uma repartição e manda jogar no
lixo aquelas caixas e caixas de papéis velhos “que só servem para ocupar
espaço”. É a turma que vai fazer acampamento num parque florestal, acende um
fogo para fazer café, e destrói não sei quantos mil hectares de Mata Atlântica,
num incêndio que precisa de mil bombeiros para ser contido. É o síndico que não
gosta de um mural e manda arrancar todos os ladrilhos, sem perguntar quem fêz
aquilo ou quando.
O *Desinformado Catastrófico* fica compreensivelmente
magoado quando a imprensa e as entidades civis caem de pau em cima dele, como
se ele fosse um criminoso. Ele não se considera um criminoso. Os delitos que
pratica não são dolosos (com intenção de prejudicar), mas são culposos, porque
prejudicam.
Existem muitos outros tipos, mas acho que por enquanto
bastam estes para dar uma idéia do quanto este problema é complicado. Um erro
freqüente da imprensa e dos órgãos de proteção ambiental é não distinguir muito
bem quem causou o prejuízo ao Patrimônio Histórico e por quê.
Existe gente que precisa de esclarecimento, de
informação; gente bem intencionada mas que errou porque não avaliou bem o que
estava fazendo. E existe gente mal-intencionada mesmo, que sabia muito bem o
que fazia, e que precisa pegar uma boa punição para não fazer de novo.
Gostaria de lembrar também, nestas poucas linhas, que
quando a gente protege um casarão antigo, um documento com séculos de idade ou
um trecho do meio ambiente não faz isto apenas por amor ao Passado. É também
por amor ao Futuro.
O Futuro, as gerações futuras, nossos filhos e netos,
precisam conhecer o mundo em que viverão, e isto inclui conhecer aqueles
objetos ou espaços que tiveram uma significação especial nos tempos já vividos
por outras pessoas. É possível fazer coexistirem o amor pelo Novo e o amor pelo
Antigo. Que melhor exemplo disto do que as cidades da Europa e da Ásia, onde se
encontram casas com séculos de idade, ruínas com milhares de anos ao lado de
arranha-céus modernos?
(Cine Metrópole, Belo Horizonte)
Li certa vez uma entrevista de um escritor onde ele dizia
ter visitado um moderníssimo prédio de escritórios em Londres. No andar térreo
havia um saguão imenso, com uns 20 metros de altura, onde centenas de pessoas
andavam em todas as direções, pegavam elevadores, etc.
No meio desse saguão, havia uma pequena capela dentro da
qual cabiam talvez uns 15 pessoas. Era uma capela do século 10, construída
pelos antigos habitantes daquela colina. Quando o edifício foi construído, o
projeto, em vez de derrubar a capela, procurou restaurá-la e protegê-la,
construindo em volta dela aquele saguão enorme.
E quando se entrava na capela, havia uma abertura no
solo, que dava para uma escada de pedra, por onde se descia até as ruínas de um
templo romano, muitos séculos mais antigo que a capela, que ficava por baixo
dela.
Nessa imagem (edifício de 1980, capela do ano 900, templo
romano de antes de Cristo) está sintetizada a noção do tempo histórico que
podemos experimentar. Na História, o Novo não precisa necessariamente destruir
o Antigo. Relíquias de diferentes épocas podem existir lado a lado. É só saber.
É só cuidar. É só lutar para que alguém não destrua, seja por cobiça, por
maldade, por descaso ou por mera desinformação.
(Uma primeira
versão deste texto foi publicada no livro A Cadeia Velha de Pombal –
Manifesto em Defesa do Patrimônio Histórico, org. José Tavares de Araújo
Neto e Werneck Abrantes de Sousa / Pombal: 2004)
Um comentário:
Isso!!!! Me da angústia a destruição que deixa abandonado até tombar no chão aquilo que foi tombado pelo Patrimônio!
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