O primeiro conto de Jorge Luis Borges publicado em inglês
não saiu em nenhuma publicação acadêmica nem em algum volume hardcover das editoras de literatura
erudita. Naquele tempo, nenhum curso universitário de literatura nos EUA e
nenhum editor dos selos de maior prestígio já tinha ouvido falar naquele
obscuro beletrista de Buenos Aires.
A honra da publicação coube a uma revista de contos
policiais, o Ellery Queen’s Mystery
Magazine, que sob a direção de Frederick Dannay procurava expandir os
limites da literatura de mistério. Dannay publicava romances sob o pseudônimo
“Ellery Queen” juntamente com seu primo, Manfred B. Lee; e editava, além da
revista, numerosas antologias onde desencavava contos de crime ou de mistério
escritos pelos grandes nomes da literatura.
Em algumas antologias suas que tenho, aparecem nomes como
os de Aldous Huxley, Mark Twain, Sinclair Lewis, Robert Graves, W. B. Yeats,
Walt Whitman, Henry Wadsworth Longfellow...
Dannay era um apreciador da
grande literatura, e durante a vida inteira se esforçou para ver a literatura
de crime ser também levada a sério pelos críticos.
No número de agosto de 1948 de sua revista, Dannay
produziu uma edição especial intitulada “All Nations Issue”, publicando contos
de autores da Inglaterra, Bélgica, Hungria, Portugal (“The Maul, the Sword and
the Sharp Arrow” de Victor Palla), Rússia, França, Tchecoslováquia, Itália,
Nova Gales do Sul (Austrália), Filipinas, África do Sul, Canadá e Argentina.
O conto argentino era “The Garden of Forking Paths” (“El
Jardín de Senderos que se Bifurcan”), de Jorge Luis Borges, traduzido por
Anthony Boucher.
Não se deve subestimar a participação de Boucher no
processo, pois “Ellery Queen” (Dannay), em sua introdução a este conto, afirma:
Foi o sr. Boucher que teve a idéia de traduzir [o conto] e de persuadir
o autor a submeter a história ao Terceiro Concurso Anual do EQMM. Somos gratos
a esse duplo papel do sr. Boucher como parteiro de mistérios – porque de outra
forma nenhum de nós teria o prazer de ler o que ele considera “um pequeno
clássico”. Ao seu modo muito peculiar, [o conto] é exatamente isso – uma obra-prima
em miniatura. (pág. 101)
Boucher é pouco traduzido no Brasil. Talvez tenham saído
alguns contos seus, policiais e de ficção científica, em nossas revistas.
Romances, só lembro de ter lido um: O
Caso do Valete Amarrotado, que saiu nos áureos tempos da Editora Vecchi, no
qual encontrei pela primeira vez a curiosa proposta do “xadrez quádruplo”,
jogado simultaneamente por quatro pessoas.
O conto de Borges, aparentemente, foi bem recebido pelos
leitores, porque voltou a ser publicado: saiu, juntamente com outros do “All
Nations Issue”, na antologia de fim de ano The
Queen’s Awards: 1948 (Boston: Little, Brown). Foi repetida ali a introdução
de Queen, onde ele afirma a certa altura:
O Señor Borges é uma importante figura literária argentina – poeta,
crítico, ensaísta e antologista. (...) Sua obra revela outro permanente
subterfúgio: ele tem uma inclinação extraordinária pela falsa erudição. É
capaz, por exemplo, de inventar um autor ou um movimento literário totalmente
apócrifos, e depois escrever uma erudita dissertação sobre a esotérica
importância desse indivíduo ou desse movimento imaginário; mas a fantasia e a
sátira que ele tece com suas opiniões críticas não deixam de ter significado
factual.
Como sabem os leitores, o conto é narrado na primeira
pessoa por Yu Tsun, um espião chinês a serviço da Alemanha, na Inglaterra, durante
a Primeira Guerra Mundial. Descoberto e perseguido pela contra-espionagem
britânica, Yu Tsun pega um trem e vai a um subúrbio distante ao encontro de um
sinólogo, o dr. Stephen Albert.
Depois de uma erudita discussão sobre literatura e sobre
uma teoria das ramificações do Tempo, Yu Tsun assassina Albert com um tiro
pelas costas. Por que? Nas últimas linhas do conto, ele explica: precisava, “através
do estrépito da guerra”, comunicar ao Estado Maior alemão o nome da cidade que
abrigava as tropas aliadas e que devia ser bombardeada.
A cidade era a cidade francesa de Albert, perto da
fronteira belga. Seu único recurso foi matar um homem inocente que tinha este
nome, sabendo que o crime sairia em todos os jornais, junto com a notícia de
sua prisão; e os alemães entenderiam o recado.
A primeira publicação do conto de Borges foi em 1941, no
livro El Jardín de Senderos que se
Bifurcan – depois reunido com outro, Artificios,
e os dois saindo em 1944 com o título conjunto e definitivo de Ficciones.
Um aspecto interessante da tradução de Anthony Boucher é
que ele, por conta própria (com ou sem permissão, ou conhecimento, de Borges?)
trocou na versão em inglês a palavra mais
importante do conto. Uma espantosa licença tradutória que raramente vi na
vida.
De fato, a palavra-chave do conto é “Albert”, nome da
cidade francesa ameaçada pelas tropas alemãs e nome do personagem assassinado
pelo espião. Mas no texto em inglês, o sinólogo morto por Yu Tsun chama-se
Stephen Corbie. “Corbie” é outra
cidade francesa, próxima de Albert. Ambas foram envolvidas na Batalha do rio Somme
(1916), uma das batalhas mais sangrentas da História, com mais de um milhão de
mortos.
Talvez o tradutor tenha achado que para o leitor
norte-americano de 1948 a cidade de Corbie evocava mais a Batalha do Somme do
que a cidade de Albert.
Robert Irwin, num dos melhores livros já escritos sobre a
obra de Borges (The Mystery to a
Solution: Poe, Borges and the Analytic Detective Story, Baltimore: The
Johns Hopkins University Press, 1994), discorre longamente sobre este conto,
mencionando não apenas a cidade de Albert como a figura do rei Albert da
Bélgica, um personagem heróico na resistência às tropas alemãs nesse mesmo
período.
A troca de “Albert” por “Corbie” é um desses pequenos
mistérios literários que dificilmente serão esclarecidos; há vinte anos que
tento encontrar uma pista de como foi negociada essa substituição, sem
resultado.
A Batalha do Somme foi um dos pontos altos da I Guerra
Mundial, e foi travada quando Borges, com 17 anos, estava morando em Genebra
(Suíça) com sua família. Pode-se imaginar a impressão que terá deixado em sua
memória.
E este pequeno truque literário de fornecer disfarçadamente
uma localização geográfica me lembra um outro episódio desse período. Que
talvez não fosse desconhecido por Borges.
Em 1914, quando começou a I Guerra Mundial (que ainda não
tinha este nome, é claro), muitos artistas e intelectuais franceses se
alistaram para reagir à agressão militar alemã; era uma guerra que
(acreditava-se na época) duraria apenas alguns meses.
Em 1915, o poeta Guillaume Apollinaire, então com 35
anos, estava alistado no 38º. Regimento de Artilharia, adestrando-se para ir
para a frente de batalha. Apollinaire era italiano de nascimento, descendente
de russos e poloneses, mas emigrou para a França e afrancesou seu nome
original. Atribui-se a ele, entre outras coisas, a criação do termo
“Surrealismo”.
Enquanto treinava em seu regimento, Apollinaire recebeu
uma carta de outro poeta francês, seu grande amigo Blaise Cendrars, que já
estava servindo na frente de batalha. (Cendrars viria a ter, depois, uma
interessante participação no Modernismo brasileiro, sendo amigo de Oswald de
Andrade e outros.)
Nessa carta a Apollinaire, Cendrars, sujeito à censura de
correspondência de tempos de guerra, como qualquer soldado, escreve:
Não posso te dizer onde nós estamo.
(“Je ne peux pas dire où
nous somme »)
O erro proposital na última palavra (que a censura não
percebeu) revela que ele estava no norte da França, justamente na região do rio
Somme. Onde ele viria a perder o braço direito em combate, pouco tempo depois.
Nenhum comentário:
Postar um comentário