quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

2445) O colaborador de conteúdo (5.1.2011)



Abril de 2019 começou bem. Meus pais me convidaram para um almoço celebrando meu novo emprego. Achei ótimo, a não ser pelo fato de que chamaram meu avô, que não me dá força de jeito nenhum. No meio do almoço, Mamãe ergueu o suco de laranja dela e disse: “Vamos brindar, gente. Ao trabalho de Betinho, e muita realização profissional para ele!” Papai ergueu a cerveja: “E dinheiro, para ele repor o que a gente gasta há vinte anos”. Mamãe replicou: “Que coisa, Alberto, pra se dizer a um filho”. Vovô, que não bebe, ergueu um pedaço de carne espetado no garfo e tocou com ele no copo de meu pai, sem dizer nada. Ele não fala com minha mãe. “E você, meu filho?”, perguntou ela, “não vai brindar?” Eu ergui minha cerveja, fiz um gesto curto em semicírculo abrangendo a todos. “Do que se trata, afinal?” perguntou Papai.

Expliquei que eu agora era colaborador de conteúdo. O Space Booth já era a maior rede de relacionamento do mundo: quatro bilhões de usuários no planeta, 250 milhões só no Brasil. Estar ali era poder ser amigo de qualquer celebridade da música, do cinema, da TV. Havia até um novo setor, o da Política Radical, que estava fazendo muito sucesso. Vovô se manifestou: “Não são políticos radicais, são terroristas.” Tentei explicar que o conceito de terrorismo é subjetivo, afinal Tiradentes foi considerado terrorista, mas Vovô não deixa ninguém falar. Fez um discurso dizendo que no tempo dele terrorista não vendia autógrafo pela Internet e primeira-ministra do Irã não distribuía calcinhas com os eleitores. Na verdade, no tempo dele o Irã nem tinha mulher na política.

Mamãe pediu licença (ela fala e Vovô se cala pra não lhe responder, toda vez é assim) e peruntou o que era colaborador de conteúdo. Expliquei que eu tinha que fazer posts o dia inteiro, de tudo que me agradasse: músicas, filmes, vídeos, roupas... Cada post dando uma dica contava pontos. Quando eu acumulava pontos suficientes, tinha direito a brindes, viagens, Vale Lazer, Vale Barato, etc. Papai me interrompeu: “Sim, mas, e salário?” Papai é tão antiquado quanto Vovô, é do tempo de salário. Expliquei que na economia moderna a pessoa presta serviços e recebe produtos, e o dinheiro, mero intermediário, tende a desaparecer. Minhas refeições eram oriundas de meus posts sobre lanchonetes. Roupas, objetos pessoais, tudo tinha origem semelhante. Cem posts sobre música davam direito a um boné, e assim por diante. “Ah meu Deus, demora uma vida”, suspirou Mamãe, e eu disse que não, durante uma tarde normal eu fazia mais de 500 posts. E minha pontuação-de-perfil era repassada para meu Cartão de Crédito, me dando abatimento nas despesas relativas aos temas que eu postava. Vovô me chamou de vagabundo e lacaio do capitalismo; aí eu joguei meu trunfo: “Qué isso, Vovô, não banque o moralista, eu dei um comando de busca e vi que você já teve 3 mil amigos no Facebook”. Ele soltou um palavrão e saiu da sala. Toda vez é assim.

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