quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

0657) Os itálicos e os negritos (27.4.2005)


(Bordón e Grafite)

O episódio recente em que um jogador argentino foi preso no Morumbi por insultos racistas ao atacante Grafite, do São Paulo, é uma salada de contradições. Ali tem de tudo: boas intenções, más intenções, estupidez, bom senso, preconceitos e discursos demagógicos de parte a parte. Futebol é engraçado. Tanto pode fazer aflorar o que temos de melhor – naqueles momentos em que os atletas se superam e produzem verdadeiras obras de arte, além de gestos de grandeza moral – como o que temos de pior. Infelizmente, o presente episódio incorre muito mais no segundo caso.

Em primeiro lugar: o racismo é um crime abominável, que deve ser denunciado e punido, etc. e tal. Até aí, concordo com todos os discursos de altruísmo étnico que estão pipocando na imprensa brasileira. Concordo também que na Europa nada se faz para punir a onda de vaias e agressões racistas contra jogadores negros, inclusive brasileiros. Claro. O racismo contra migrantes, lá, sempre existiu; o problema é que agora cresceu tanto que está atingindo inclusive os migrantes que são famosos e milionários, em vez de somente os pés-rapados.

O que me parece óbvio, contudo, é que todo este circo foi armado porque foi em cima de um jogador argentino, e aí entrou em ação o nosso racismo tropical contra os nossos “hermanos” que alegam ter sangue italiano, inglês, alemão, sei lá mais o quê. É uma rivalidade puramente bairrista, ampliada pela paixão futebolística, que é uma das paixões mais emburrecedoras que existem. Será que no campeonato paulista ninguém chama os jogadores negros de “nego safado” ou de “macaco”? Será que foi preciso vir um argentino para que essas ofensas soassem pela primeira vez num gramado pátrio? Fala sério!

Quem já tenha visto um jogo de futebol de perto sabe que ali rola muito mais insulto do que carrinho por trás e agarra-agarra no escanteio. Até no futebol feminino, os microfones à beira do campo flagram o tempo todo nossas simpáticas atletas se chamando de “piranha” e “puta safada”. Não é um hábito recomendável, mas, fazer o quê? Jogadores se chamam de “viado”, “nego safado” e de todo o resto durante os 90 minutos. Foi preciso um delegado torcedor do São Paulo para achar que aquilo é racismo – numa cidade onde empregadas domésticas não sobem pelo elevador social, e onde cidadãos anônimos da cor de Grafite são fuzilados na rua se não obedecerem a uma ordem de parar.

Que tal reprimir o racismo, mas em toda parte? Que tal punir com cartão e suspensão os jogadores que ultrapassarem a aspereza normal de uma disputa esportiva? Que tal proibir o acesso ao estádio de torcidas que façam movimentos racistas coletivos? Agora – esse pretenso bom-mocismo de defesa dos negros serve para mascarar outro preconceito: o de brasileiros contra argentinos, e vice-versa. Não vou explicar (não consigo entender) por quê se detestam. Mas foi esta a única razão do circo ser armado. O resto é demagogia.

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