quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

5211) A quebra da Quarta Parede 2 (11.12.2025)





(The Great Train Robbery, 1903)

 
Escrevi algum tempo atrás, no meu mural do Substack, um artigo intitulado “023 – A quebra da quarta parede”. 
 
(Digressão: se você gosta de ler os artigos do Mundo Fantasmo, talvez lhe interesse ver os que eu publico no Substack – são textos diferentes, mas no mesmo estilo daqui. O Substack virou, se bem me exprimo, uma filial, um puxadinho do Mundo Fantasmo.) 
 
Procure aqui: https://substack.com/@brauliotavares?
 
A “quarta parede” é aquele conceito muito usado no teatro, sugerindo que o palco é um aposento comum, com quatro paredes, só que a “quarta parede” é invisível, mas existe – é o espaço vazio que separa o palco e a platéia. 
 


A quarta parede é uma metáfora da ilusão teatral, ou do acordo teatral, mediante o qual os atores fazem de conta que o que sucede no palco é de verdade, e nós fingimos que acreditamos. Fingimos que existe, sim, uma quarta parede ali na beira do palco, e que ela separa duas realidades que não se comunicam. 
 
Quebrar a quarta parede é, basicamente, dirigir-se à platéia. 
 
No teatro, isto sempre existiu, principalmente no teatro mais popularesco, descontraído, em que ninguém está preocupado em fornecer “ilusão de realidade”. Um dos recursos mais interessantes são os famoso “à parte” tão frequentes nas farsas e comédias do século 18 ou 19. 
 
MARQUESA DE VELMONT – Oh, meu caro Conde, sentemo-nos aqui sob este caramanchão! Estou tão emocionada com o nosso noivado... Dê-me sua mão. Fico feliz em ver que o que o atrai em mim não é a minha fortuna.
 
CONDE RENARD (PEGANDO NA MÃO DELA) – Claro, minha querida. (À PARTE, PARA A PLATÉIA) Vocês já viram uma criatura mais inocente do que esta? Chega dá pena!

 
Atores dirigem-se à platéia sempre que isso reforçar aquela cumplicidade mútua em que os espectadores se projetam num personagem. 
 
Uma forma muito popular da quebra da quarta parede é quando os atores introduzem os famosos “cacos”, piadinhas que não estavam no texto original, e que muitas vezes nada têm a ver com ele. São meros gracejos do próprio ator, ou referências a fatos do momento, coisas de conhecimento de todos.  



(Bertolt Brecht, A Alma Boa de Setsuan)
 

Tudo isto conduz a uma idéia: há um tipo de encenação que ganha com a manutenção da quarta parede, e um tipo que ganha com sua quebra. Produzir essa ruptura e dirigir-se explicitamente ao público pode ter um efeito cômico, como nos exemplos acima, mas também um efeito dramático. No “teatro épico” de Bertolt Brecht, frequentemente os atores interrompem uma ação e questionam o público. Estão percebendo o que acontece? O que acham daquilo? Está correto, está errado? O que deveriam fazer os personagens, numa situação como aquela?  
 
Esse recurso aparece na literatura de uma forma que considero menos disruptiva, menos sobressaltante. Num certo tipo de literatura, pelo menos, dirigir-se ao leitor é algo comum, estabelece um laço coloquial que parece nos trazer de volta às histórias em torno da fogueira, ou diante da lareira, ou na mesa de bar. Não há quebra de realidade. Alguém esta contando uma história a você, leitor. 



 
Machado de Assis tem uma maneira inimitável e encantadora de usar esse recurso. Machado escrevia nos jornais e revistas de sua época. Seus contos, tantas vezes, são conversas mansas, episódios contados numa voz sem pressa, trazendo o leitor (ou mais frequentemente: “a leitora”) para dentro da ação. 
 
Imagine a leitora que está em 1813, na igreja do Carmo, ouvindo uma daquelas boas festas antigas, que eram todo o recreio público e toda a arte musical. Sabem o que é uma missa cantada; podem imaginar o que seria uma missa cantada naqueles anos remotos. 
 
O conto é o clássico “Cantiga de Esponsais”, um dos meus preferidos. É um conto de 1883, publicado nas revistas A Estação e O Álbum, antes de ser recolhido em Histórias Sem Data (1884). 
 
O conceito de data é crucial neste caso. Para nós, alienígenas de 2025, os anos de 1883 e de 1813 são igualmente remotos, quase indistinguíveis. Machado está contando uma história ambientada 70 anos antes, num tempo que ele nem sequer conheceu. Ele precisa chamar a atenção da leitora para esse detalhe, e convocar sua imaginação: “Podem imaginar o que seria...” 
 
Trazer a leitora para dentro do conto, dirigir-lhe a palavra, conduzi-la, tudo isto sem quebrar a “ilusão de realidade” (a ilusão de que aqueles acontecimentos narrados ocorreram de verdade), não é uma tarefa muito fácil. 
 
Hoje em dia, nós, blogueiros e cronistas da imprensa diária, usamos e abusamos do “caríssimo leitor”, “meu caro leitor”, “querida leitora”, vocativos meio insulsos, sugerindo uma intimidade, uma espécie de “tamo junto”, que não vai muito além disto.  
 
Tudo que uma leitora quer é sentir firmeza, sentir que o autor sabe o que está fazendo quando se dirige ao nosso mundo e quando nos leva ao mundo que está fantasiando. Machado mostra sempre essa firmeza, com a segurança que exibe no primeiro parágrafo de “Habilidoso” (Gazeta de Notícias, 1885): 
 
Paremos neste beco. Há aqui uma loja de trastes velhos, e duas dúzias de casas pequenas, formando tudo uma espécie de mundo insulado. Choveu de noite, e o sol ainda não acabou de secar a lama da rua, nem o par de calças que ali pende de uma janela, ensaboado de fresco. Pouco adiante das calças, vê-se chegar à rótula a cabeça de uma mocinha, que acabou agora mesmo o penteado, e vem mostrá-lo cá fora; mas cá fora estamos apenas o leitor e eu, mais um menino, a cavalo no peitoril de outra janela, batendo com os calcanhares na parede, à guisa de esporas, e ainda outros quatro, adiante, à porta da loja de trastes, olhando para dentro.
 
O que garante a fluência do texto é a forte impressão de realidade produzida por tantos detalhes verossímeis. É um ambiente rico de detalhes visuais (que lembram um álbum de fotos de Cartier Bresson), vívido, que não se rompe quando o autor diz que “...cá fora estamos apenas o leitor e eu...”



Machado inventou este recurso? De jeito nenhum. Todos os autores de folhetim do século 19 o utilizavam, puxando o leitor pela manga da camisa para comentar certas atitudes dos personagens, explicar certos detalhes do ambiente. É outro tipo de “narrador onisciente” – ele não apenas parece conhecer tudo do mundo que nos está contando, como também tem trânsito livre neste daqui. 
 
Isto é “quebra da quarta parede”? Sim, no sentido de que qualquer narrativa de ficção pressupõe essa divisória invisível entre nosso mundo e o outro. No entanto, uma das lições da narrativa com origem no jornal é essa coloquialidade, esse trânsito fácil entre os dois mundos. Esse Machado de Assis que trata o(a) leitor(a) com intimidade logo nas primeiras frases de seu conto. 
 
Não me perguntem pela família do Dr. Jeremias Halma, nem o que é que ele veio fazer ao Rio de Janeiro, naquele ano de 1768, governando o conde de Azambuja, que a princípio se disse o mandara buscar; esta versão durou pouco. 
(“O Lapso”, Histórias sem Data
 
Parece-lhe então que o que se deu comigo em 1860, pode entrar numa página de livro? 
(“O Enfermeiro”, Várias Histórias
 
Era conveniente ao romance que o leitor ficasse muito tempo sem saber quem era Miss Dollar. Mas por outro lado, sem a apresentação de Miss Dollar, seria o autor obrigado a longas digressões, que encheriam o papel sem adiantar a ação. Não há hesitação possível: vou apresentar-lhes Miss Dollar. 
(“Miss Dollar”, Contos Fluminenses
 
Vêde o bacharel Duarte. Acaba de compor o mais teso e correto laço de gravata que apareceu naquele ano de 1850, e anunciam-lhe a visita do major Lopo Alves. Notai que é de noite, e passa de nove horas. 
(“A Chinela Turca”, Papéis Avulsos
 
 
Cinema, teatro, televisão tudo isto oferece aos olhos do público um universo cuja existência se impõe visualmente, sonoramente. A quarta parede surge muitas vezes para preservá-lo, impedir que se desfaça como um enorme aquário trincado.
 
Na literatura, só existe a voz do autor, murmurando ao ouvido do leitor. Não há parede: há essa voz que aproxima duas consciências e, quando bem manejada, consegue fazer com que pensem juntas. 
 
Aqui, meu artigo no Substack sobre o mesmo tema: 
https://brauliotavares.substack.com/p/023-a-quebra-da-quarta-parede-1



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