Voltando para casa, alta noite, sozinho, pelos becos
escorregadios da Internet, me deparei com um saite inteiro dedicado a “Lendas
Urbanas do Teatro”. Aquele folclore
relativo a montagens teatrais, lembrando de cenas hilárias ou inacreditáveis,
mas que todo mundo garante que aconteceram (no teatro de sua cidade, sempre),
porque “um primo da namorada do meu irmão estava lá, e viu”.
Tenho certeza de que tudo aquilo é verdade, aconteceu de
verdade: na Romênia, na Itália, no Cazaquistão, em Cajazeiras, em San Diego, em
Bundanyabba.
***
(imagem meramente
ilustrativa)
A “Paixão de Cristo” é o foco principal desses
acontecimentos, talvez por ser uma das peças mais montadas no mundo inteiro. Com
a ressalva de que não é “uma peça”, e sim o mesmo mito cristão decorado,
aprendido, recontado, reformulado e refeito diante do público momentâneo e
eterno.
Público que – somos humanos – não pôde conter o riso
diante daquela montagem (em Burma, no México, em Maricá?) em que após a
crucificação de Jesus, alguém se aproxima, sozinho no palco. Meu Deus... é
Judas! Black-out parcial, holofote só
sobre ele, que vem cambaleando, pedindo perdão pela infâmia que cometeu.
Arremessa para longe as moedas, que tilintam (e são mesmo trinta; uma
assistente-de-direção virginiana encarregou-se deste tributo à
verossimilhança).
Aproxima-se da árvore fatal, aos brados:
-- Traí meu mestre! Mereço a morte!
Ele pára a um metro de distância: o galho é alto, e a
corda que alguém deveria ter deixado guardada ali não está à vista. O público
está com a respiração suspensa, e percebe o problema.
Judas, num rasgo de improvisação, abre os braços
dramaticamente: “Traí meu mestre! Quero morrer!” – e atira-se de cabeça no
laguinho que há aos pés da árvore, tornando-se o primeiro Judas Afogado da
história eclesiástica.
***
(Vittorio de Sicca no teatro)
O teatro é um risco permanente diante do Acaso, e por
isto é um convite permanente ao Improviso. Monte no tigre, e boa viagem.
O grande Vittorio de Sicca contava que, ainda muito
jovem, nos seus tempos de figurante anônimo e faminto, cabia-lhe entrar em cena
no terceiro ato e entregar uma carta ao Marquês, ou Conde, ou algo assim.
Quando foi na hora da cena, o rapazinho respirou fundo,
entrou no palco e viu ali, bem à sua frente, o Monstro de Mil Rostos -- a platéia. Não resistiu
e caiu desmaiado.
Era um bom motivo para correr o pano, mas (diz De Sicca)
o ator do Marquês era macaco velho: levantou-se, recolheu a carta, pegou o
rapazola desmaiado nos braços, e comentou com a platéia, enquanto o levava para
a lateral:
-- É... preciso esconder a chave da minha adega...
E a casa veio abaixo.
O teatro, como o futebol, vale por esses gols de
bicicleta em que alguém tem meio segundo para conceber e executar uma
obra-prima.
***
(imagem meramente
ilustrativa)
Outra de Semana Santa aconteceu em Campina Grande. É o
que dizem – eu não presenciei, mas o que as pessoas presenciam em Campina não
está no gibi.
Fernando Silveira foi um grande radialista, da geração de
meu pai. Por muitos anos escreveu todo tipo de programas para a Rádio Borborema.
E escrevia também os famosos dramas religiosos, de vez em quando levados ao
palco do Teatro Municipal. Entre eles a “Paixão de Cristo”.
Reza a lenda que numa dessas montagens de Semana Santa a
produção resolveu caprichar. Figurinos de primeira, cenários realistas, trilha
sonora bem produzida. E na cena crucial da Última Ceia, depois de um blecaute
de alguns segundos, a cena se iluminava para revelar no centro do palco a mesa
tradicional, ocupada somente de um lado, como nos quadros.
Jesus Cristo e os apóstolos estão acomodados... e a Ceia
era uma ceia de verdade. Segundo testemunhos, foram encomendados na Cabana do
Possidônio, que não ficava tão longe assim, seis galetos completos, com arroz,
farofa, feijão verde, batata frita e molho vinagrete. Servida a mesa, Cristo e
os apóstolos se sentaram, aspiraram com fervor aquele cheiro irresistível...
Estavam todos famintos depois de uma tarde inteira de “ensaio geral com roupa e
luz”, e atacaram os galetos com fúria.
Foram os dez minutos mais silenciosos da História do
Teatro.
***
(David Suchet)
Esta eu vi contada num programa pelo próprio protagonista,
o ator David Suchet, o ótimo “Hercule Poirot” da série de TV.
Diz ele que na
adolescência, quando fazia teatro estudantil, houve a estréia de uma peça, com
o auditório do colégio lotado de pais, professores, agentes, profissionais de
teatro. O segundo Ato deveria começar com o palco todo às escuras e no meio da
escuridão o personagem de David chamava, com voz trêmula:
-- Mamãe?... Mamãe?...
Nem bem ele lançou seu chamado, a mãe dele, do meio da
platéia, gritou:
-- Estou aqui, David!...
A gargalhada geral foi estrondosa, as luzes se acenderam,
o diretor da escola veio ao palco e disse:
-- Senhoras e senhores, vamos voltar e recomeçar o
segundo ato. Pedimos a compreensão de todos e o seu silêncio... Senhora Suchet.
E ele conclui dizendo: “Eu sempre a amei por isto”.
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(“Ensaio Droxtop”, Campina Grande, 1974)
Saber improvisar sem quebrar a cena é tudo. Aprende-se
isto como se aprende tanta outra coisa na profissão artística: dando com a
cabeça na parede.
Muitas pessoas em Campina Grande hão de lembrar o grupo
Droxtop, criado nos anos 1970 por Gutenberg Assis. Era um grupo de teatro
experimental: quinze rapazes e moças que se apresentavam num palco escuro,
iluminado pela famosa “luz negra” das boates (na época, uma novidade
inquietante).
Era o “Ensaio Droxtop”: música clássica, atmosfera
gótica, todos vestindo túnicas brancas, com os rostos pintados de tintas fosforescentes,
recitando textos próprios, e de poetas que iam de Augusto dos Anjos a Carlos
Drummond e outros.
Convivi muito com o grupo, porque era amigo do diretor e de
grande parte do elenco (tínhamos a mesma idade), e na época eu era casado com Lili,
Arly Arnaud, que era uma das integrantes. Assisti inúmeras apresentações.
Certa vez o grupo se apresentou em Mossoró (ou Caicó?).
Havia uma cena muito dramática em que dois atores, Sarmento e Jomário,
agarravam um terceiro, Zé Antonio, e o amarravam a uma cruz, com cordas de
verdade; depois, iam até um fogareiro de brasas, aceso no palco, onde estavam
esquentando dois ferros de marcar gado (de verdade). Empunhavam esses ferros e
um dos dois dizia:
-- E o que faremos agora com este canibal? (apontando Zé
Antonio amarrado na cruz).
-- Vamos ferrá-lo!
Era um momento dramático, porque os ferros estavam mesmo
em brasa. Claro que o ator tinha amarrada ao peito, por baixo da camisa, uma
placa de couro, que recebia os ferros, chiava, e produzia uma fumaça
impressionante, enquanto o “canibal” se contorcia em dores histriônicas.
Nessa noite em Caicó (ou foi Mossoró?) fizeram a cena,
mas após o momento “oooh” a camisa de Zé Antonio pegou fogo. Os dois carrascos deram-lhe
as costas e não perceberam: incorporados nos personagens, de ombros contraídos,
brandindo os ferros flamejantes, fitavam a platéia com carrancas ameaçadoras,
porque era justamente a hora de se retirarem do palco, deixando ali o
crucificado.
Ocorre que, na hora de se voltarem, perceberam que o
crucificado se debatia em vão com as cordas, porque havia chamas em seu peito e
a fumaça lhe subia pela cara. Jomário (ou foi Sarmento?) teve a presença de
espírito de apontar para ele e bradar, por iniciativa própria:
-- E este canibal?
O que fazemos com ele?!
E Sarmento (ou foi Jomário?) saltou à altura da situação,
apontando-o e bradando:
-- Vamos levá-lo... para as profundezas do Inferno!!!
Desamarraram o semi-desmaiado Zé Antonio e o conduziram
para a coxia, onde alguém já o esperava com o providencial balde dágua.
("Ensaio Droxtop", Campina Grande, 1974)
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