quarta-feira, 26 de março de 2025

5165) As Máquinas do Tempo (25.3.2025)





 
Tenho com alguns filmes antigos uma relação parecida com a que muitos amigos meus têm com séries tipo Star Wars ou Star Trek. Essas séries, no cinema ou na TV, me deixam indiferente. Sinto apenas a curiosidade normal quanto a qualquer obra de FC. Vejo, gosto disto, não gosto daquilo, tenho uma vaga simpatia-a-favor, mas fica por aí. 
 
Por essa razão, já fui acusado de insensibilidade por pessoas que ficam com lágrimas nos olhos ao assistir pela décima vez O Império Contra-Ataca ou A Ira de Khan. 
 
Entendo total. São filmes que eles conheceram na infância. Filmes que entraram na sua mente quando, por assim dizer, o portão mental ainda estava escancarado, convidativo. 



 
Alguns filmes que a gente vê na infância deixam uma impressão muito forte. Todos os filmes? Não, somente alguns. Por que? Por mil motivos diferentes. Dos filmes que vi com 12 anos de idade ou menos, alguns são clássicos do cinema que revi depois com ainda mais entusiasmo. Outros são filmes obscuros de que lembro algumas cenas e às vezes o titulo. Os demais não deixaram marca alguma. 
 
Nunca vi Star Trek na televisão. Não passava nos canais que eu assistia em Campina Grande quando garoto. E depois dos 18 anos fiquei usando televisão apenas para ver telejornal e futebol. 
 
Até os meus 30 anos de idade, Star Trek era apenas uma série famosa sobre a qual eu lia de vez em quando nos livros e revistas. Simpatizo com algumas premissas da série, que tem uma abordagem tipo “Ciências Sociais Aplicadas ao Universo”. E me identifico com o Sr. Spock, aquela ilha de sensatez. 



 
E a série Star Wars, do ilustre George Lucas? Quando assisti o primeiro filme da trilogia, eu não era mais candidato a fã de coisa alguma. Vi esse filme com 28 anos e já com muitos anos de fazer crítica de cinema em jornal. Gostei porque na época já lia sobre a pulp fiction das revistas dos EUA. Esse filme era uma mistura daquelas revistas com a nascente tecnologia de efeitos especiais. 
 
Star Wars e suas continuações (parei de acompanhar, depois de um certo momento) são uma “fantasia tecnológica” cheia de detalhes simpáticos e de ingenuidades, de “jornada do herói” diluída e de efeitos dramatúrgicos de seriado (assim como a série “Indiana Jones”, sua contemporânea). 
 
Considerá-la o protótipo do cinema de ficção científica é uma imprudência, mas ela é o primeiro título que vem à memória do público leigo no assunto (a maioria da humanidade). 




E no entanto... Aqui nesta página há uma pequena coleção de obras de FC/fantasia que vi com 12 anos ou menos, e estes, sim, me despertam sempre a mesma reação de fascínio e afeto, a mesma reação que meus amigos mais jovens têm com as séries. 
 
Sou totalmente consciente dos seus defeitos, mas perdoo tudo, porque eles me ajudaram a passar por portas que a literatura já havia aberto. Tive sorte (acho hoje) de ter minhas primeiras experiências de “narrativas da imaginação” através da literatura, sendo forçado, com isto, a visualizar por minha própria conta os cenários, ambientes e criaturas mais improváveis da pulp fiction a que eu tinha acesso. 



 
O cinema, porém, nos traz o impacto fatal das coisas prontas, das imagens que não precisamos imaginar. E que jamais imaginaríamos, por maior que fosse nossa capacidade delirante. O delírio do mundo é maior. 
 
Ver certas imagens, contemplar certas paisagens, acompanhar certos enredos... isto provoca uma ampliação da nossa consciência do possível. Mesmo quando o que vemos é claramente impossível. Não importa. Quando vemos um desses filmes, pouco importa a linha evolutiva da linguagem cinematográfica, pouco importa a grande Arte, pouca importa o mundo sério dos adultos. É a nossa capacidade de conviver mentalmente com o impossível que está sendo testada. 
 
Quem na vida adulta se criou – como eu – no universo-paralelo da crítica literária e da crítica cinematográfica às vezes acaba perdendo esta capacidade de se deslumbrar, acaba se apegando à “qualidade estética” como elemento único para definir uma obra. “Só gosto do que é bom”. 



 
Eu sempre procurei manter as duas janelas abertas: a busca pelo que nossa cultura considera a Grande Arte, e a busca pelo que esta mesma cultura considera Lixo Inexplicável. Como no símbolo do Yin-Yang, em cada uma delas existe uma semente da outra. 
 
Ray Bradbury disse, na epígrafe de suas Crônicas Marcianas
 
É bom quando a gente recupera a capacidade de se maravilhar. A Era Espacial transformou nós todos em crianças novamente. 
(trad. BT)
 
E Bradbury, em que pese certa água-com-açúcar presente em muito do que escreveu (e há defeitos maiores por aí), nunca perdeu de vista o lado sério que a vida também tem, o lado macabro, o lado dark, o lado cruel (vide Fahrenheit 451). 

 
Uma velha ironia do mundo da FC diz que a Idade de Ouro da ficção científica é quando você tem 14 anos. E é verdade. Não foi a década de 1930, nem a de 1960, nem a época atual. Foi quando o leitor, não importa qual, tinha uma mente já capaz de entender o que era possível e o que era impossível, e ainda capaz de se apaixonar por este último. 
 
O impagável G. K. Chesterton tem, como sempre, uma boa explicação para o poder da fantasia narrativa. No capítulo “The Ethics of Elfland” do seu clássico Orthodoxy (1908), ele faz um curioso paralelo entre a literatura realista e o deslumbramento da literatura de fantasia, usando crianças como exemplo. 
 
Diz ele:
 
Esse deslumbramento básico, porém, não é uma mera fantasia derivada dos contos de fadas; pelo contrário, todo o fogo contido nos contos de fadas deriva dele. Assim como todos nós apreciamos histórias de amor porque temos o instinto do sexo, todos gostamos de contos fantásticos porque eles tocam o nervo do nosso antigo instinto da fantasia.

 

Isto pode ser comprovado pelo fato de que quando somos crianças ainda muito novas não precisamos de contos de fadas: para nós, basta que seja um conto. A mera vida real já é suficientemente interessante. Uma criança de 7 anos pode se excitar ao ler que Tommy abriu a porta e viu um dragão. Mas uma criança de 3 anos se excita ao saber que Tommy abriu uma porta. Meninos gostam de histórias românticos, mas criancinhas gostam de histórias realistas – porque as consideram românticas. Na verdade, uma criancinha talvez seja a única pessoa, creio eu, capaz de ler um romance realista moderno sem ficar entediada.  (trad. BT) 

 

 

Acho que a idéia de Chesterton tem bastante fundamento, sem que precise ser uma regra universal. Todos sabemos o quanto criança pequena gosta mais da caixa-do-presente do que do presente. O presente pode ser um cyber-polichinelo “made in Taiwan” com balloons holográficos em cinco idiomas, mas o danado do guri só quer se esconder na caixa. 
 
É claro. Primeiro a gente conquista a realidade, o mundo de verdade, o mundo realista; e então a gente decola nos voos da imaginação. Talvez seja por isto que no Brasil a literatura realista continua a ter tanto peso: não sabemos ainda quem somos, não enxergamos (= não temos a ilusão de que enxergamos) o país por inteiro, e um espelho nos seduz mais do que um quadro de Salvador Dali. 
 
A literatura de imaginação é para as pessoas (ou os países) que já se deslocam no “mundo real” com segurança bastante para pegar uma pista e decolar rumo às estrelas. É justamente nesse momento da vida – digamos 14 anos, para acompanhar a citação lá em cima – que começa a Idade de Ouro da FC, porque o garoto ou a garota que lê já conhece o bastante do mundo para perceber o quanto aquilo é impossível, o quanto aquilo é diferente, o quanto aquilo é essencial. 




 






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