quarta-feira, 19 de março de 2025

5163) Machado de Assis: "Virginius" (19.3.2025)




Machado de Assis fugia do melodrama como o diabo da cruz. Não sei se essa comparação é adequada, apesar de ser um clichê da língua. Pode ser melhor dizer que o Machado de Assis maduro evitava o melodrama como um pároco evita um samba. 
 
Por melodrama me refiro às histórias de emoções exageradas, violência explícita, ação constante, aventuras disparatadas, enredos rocambolescos, reviravoltas implausíveis. Literatura sensacionalista; histórias que buscam acima de tudo envolver e sacudir o leitor, sem permitir que ele pense muito. Era assim que funcionavam, como regra geral, o melodrama no teatro e o romance-folhetim nos periódicos. 
 
Já folheei muito meu Volume II (Conto e Teatro, 1.168 págs.) das Obras Completas de Machado pela Ed. Aguilar (1959), em busca de contos policiais. São raros os contos dele onde há um crime violento; assim de chofre só me acodem à memória “A Cartomante” e “O Enfermeiro” (Várias Histórias) e “Virginius” (Outros Contos). Deve haver outros; e posso lembrar também o clássico “A Chinela Turca” (Papéis Avulsos), um dos meus preferidos, justamente por ser uma sátira ao folhetim/melodrama. 
 
“Virginius (História de um advogado)” é conto de juventude, publicado por Machado no Jornal das Famílias em julho-agosto de 1864. 
 
O advogado conta como recebeu um bilhete anônimo convocando-o a defender um réu, numa cidadezinha do interior. Ele vai para lá, hospeda-se na casa de um amigo, e toma conhecimento dos fatos. 
 
O crime ocorreu na fazenda de um patriarca bondoso, o velho Pio, conhecido como “Pai de Todos”. O filho deste, Carlos, tentou violentar a filha, Elisa, de um trabalhador humilde, Julião. Sequestrados e amarrados por Carlos e seus capangas, Julião percebe que a filha vai ser deflorada e antes que isso aconteça consegue livrar-se e mata-a com uma punhalada no coração.  
 
O advogado expõe as razões morais do crime: o pai matou a própria filha para evitar que fosse desonrada. Consegue uma pena reduzida (dez anos) para o criminoso. O conto se encerra com uma nota melancólica sobre os dois pais idosos que choram juntos a morte da jovem inocente.  



(Machado de Assis, by Loredano)


Machado tinha seus 25 anos quando o conto foi publicado,. É uma narrativa tateante, em que o autor por vezes pisa terreno sólido, principalmente ao reunir elegância e simplicidade de expressão, um dos pontos fortes do Machado de Assis maduro. Mas aqui, experimentando ainda seus instrumentos, ele se arrisca no terreno escorregadio do melodrama, onde tenta manter-se de pé com certo custo.  
 
Logo no início, ao receber o bilhete anônimo que põe a história em movimento, o narrador diz:  
 
Li e reli este bilhete, voltei-o em todos os sentidos; comparei as letras com todas as letras dos meus amigos e conhecidos... Nada pude descobrir.
Entretanto, picava-me a curiosidade. Luzia-me um romance através daquele misterioso e anônimo bilhete. (p. 711) 
 
O bilhete tinha sido enviado pelo fazendeiro, o velho Pio, comovido com o drama vivido pelo seu morador, e com remorso pela ação indigna do filho. E o conto não dá muita justificativa para que o bilhete fosse anônimo, a não ser o pretexto do mistério – melodrama puro. 
 
O bilhete, curiosamente, promete: 
 
Despesas e honorários ser-lhe-ão satisfeitos antecipadamente, mal puser o pé no estribo. (p. 711)
 
O advogado não responde à proposta, mas resolve aceitar. 
 
Ultimei uns negócios, dei de mão outros, e oito dias depois de receber o bilhete tinha à porta um cavalo e um camarada para seguir viagem. No momento em que me dispunha a sair, entrou-me em casa um sujeito desconhecido, e entregou-me um rolo de papel contendo uma avultada soma, importância aproximada das despesas e dos honorários. Recusei apesar das instâncias, montei a cavalo e parti. (p. 711) 
 
Não posso deixar de ver nisto uma mecânica narrativa típica de Ponson du Terrail ou Maurice Leblanc. Pressupõe-se, então, que o portador do dinheiro ficou de tocaia à casa do advogado durante oito dias, para fazer-lhe o pagamento apenas quando constatasse sua intenção real de viajar. E como saberia o destino da viagem? 



(Machado de Assis, by Stegun)


Os personagens do folhetim vivem perpetuamente sujeitos a essa espécie de vigilância invisível por parte de gente que os ameaça ou os protege. Frases como “entrou-me em casa um sujeito desconhecido” são cacoetes do gênero, onde tanto o perigo quanto a fortuna descem do céu “ex machina”
 
O advogado parte em viagem, e aí aparece outra dessas informações novas que acometem os escritores durante a escrita de improviso. 
 
Só depois de ter feito alguma léguas é que me lembrei de que justamente na vila a que eu ia morava um amigo meu, antigo companheiro de academia, que se votara, oito anos antes, ao culto da deusa Ceres, como se diz em linguagem poética. (p. 711) 
 
Ora, o advogado teve oito dias para preparar sua viagem à vila, e só quando estava na estrada lembrou-se desse amigo? Meio improvável, até pelo modo afetuoso e reverente com que, nas páginas seguintes, a amizade dos dois é descrita. 
 
Entrou nova porção de café. Tomamo-lo entre recordações do passado, que muitas eram. Juntos vimos florescer as primeiras ilusões, e juntos vimos dissiparem-se as últimas. Havia de que encher não uma, mas cem noites. (p. 713)
 
E o tempo inteiro o advogado continua seduzido pelo lado romanesco da pequena aventura que imagina estar vivendo: 
 
-- A que vens? A que vens? – perguntava-me ele.
-- Vais sabê-lo. Creio que há um romance para deslindar. (p. 712)
 
(...)
 
O meu amigo continuou a desfiar as virtudes do fazendeiro. Meu espírito apreendia-se cada vez mais de que eu ia entrar em um romance. (p. 713) 
 
Vamos adiante, logo para a cena da violência. O velho Julião chega em casa à noite, ouve gritos, surpreende Carlos (o filho do fazendeiro) atacando a moça Elisa, garantido por capangas. O rapaz larga Elisa e, com os capangas, subjuga e amarra Julião; e ao invés de consumar o estupro sai da casa, deixando ali o pai amarrado e a filha solta, com apenas um bandido de vigia. 
 
Para quê? Certamente para proporcionar a chance deste desfecho entre as vítimas: 
 
-- Elisa, tens realmente a tua desonra por uma grande desgraça?
-- Oh! Meu pai! – exclamou ela.
-- Responde! Se te faltasse a pureza que recebeste do céu, considerar-te-ias a mais infeliz de todas as mulheres?
-- Sim, sim, meu pai!
Julião calou-se. (p. 717)
 
A mocinha aproxima-se do pai, que está amarrado e sentado no chão, e aconchega-se a ele. 
 
A sentinela não dava fé do que se passava. Depois de alguns momentos do abraço de Elisa e Julião, ouviu-se um grito agudíssimo. A sentinela correu aos dois. Elisa caíra completamente banhada em sangue. 
Julião tinha procurado a custo apoderar-se de uma faca de caça deixada por Carlos sobre uma cadeira. Apenas o conseguiu, cravou-a no peito de Elisa. Quando a sentinela correu para ele, não teve tempo de evitar o segundo golpe, com que Julião tornou mais profunda e mortal a primeira ferida. Elisa rolou no chão nas últimas convulsões. 
-- Assassino! – chamou o sentinela. 
-- Salvador!... salvei minha filha da desonra! 
-- Meu pai!... murmurava a pobre pequena expirando. (p. 718) 





É um exemplo típico da literatura popular que se praticava na época de Machado, e não apenas no Brasil. Margaret Dalziel (Popular Fiction 100 Years Ago, Cohen & West, 1957) analisa a produção desses contos e romances em língua inglesa “cem anos atrás”, ou seja, meados do século 19.  São as mesmas situações exageradas, os vilões malévolos, as heroínas puras e ingênuas, as ações estereotipadas, as coincidências forçadas pelo autor. 
 
No conto de Machado, o vilão deixa a moça desamarrada, esquece uma faca de caça, deixa apenas uma sentinela, amarra o velho tão mal que ele consegue soltar um braço... Ou seja, o autor imaturo e entusiasmado faz todos os malabarismos possíveis para produzir uma situação pouco verossímil, porque não lhe ocorre (ele escreve às pressas, para publicação em jornal) uma solução melhor, então “não tem tu, vai tu mesmo”. Uma literatura baseada em efeitos de choque-e-espanto, na busca da emoção violenta a qualquer custo, avalizada, no contexto, pela inevitável “lição de moral”. 
 
A listagem cronológica da Wikipedia identifica “Virginius” como o quarto conto publicado por Machado de Assis. Era começo, comecinho-mesmo de carreira. Vê-se aqui do quê ele procurava se afastar vinte ou trinta anos depois. Alguns críticos condenam a “frieza emotiva” de Machado e esquecem que o “calor emotivo” era um dos principais recursos com que os escritores do melodrama subornavam a atenção e a fidelidade das platéias.
 
Era folhetim desbragado o objetivo do jovem escritor? Talvez não. No próprio conto ele puxa do bolso o trunfo classicista, a fonte acadêmica de sua inspiração.
 
Saí da cadeia alvoroçado. Não era romance, era tragédia o que eu acabara de ouvir. No caminho as idéias se me clarearam. Meu espírito voltou-se vinte e três séculos atrás, e pude ver, no seio da sociedade romana, um caso idêntico ao que se dava na vila de ***.
Todos conhecem a lúgubre tragédia de Virginius. Tito Lívio, Diodoro de Sicília e outros antigos falam dela circunstanciadamente. Foi essa tragédia a precursora da queda dos decênviros. Um destes, Ápio Cláudio, apaixonou-se por Virgínia, filha de Virginius. Como fosse impossível tomá-la por simples simpatia, determinou o decênviro empregar um meio violento. O meio foi escravizá-la. Peitou um sicofanta, que apresentou-se aos tribunais reclamando a entrega de Virgínia, sua escrava. O desventurado pai, não conseguindo comover nem por seus rogos, nem por suas ameaças, travou de uma faca de açougue e cravou-a no peito de Virgínia.  (p. 719) 
 
A fonte clássica não cancela o fato de que, na imensa fazenda chamada Brasil, os filhos dos fazendeiros estupram a torto e a direito as filhas dos moradores. O que emperrou a narrativa de Machado foi o mecanismo narrativo deficiente – mesmo numa história tão superficialmente realista, teria sido preciso dar maior verossimilhança à ação dramática, e depender menos dos paroxismos de emoção alegados em dois ou três rabiscos. 
 
Machado de Assis nunca foi um grande autor de cenas de ação; é na observação que ele cresce, no comentário, na elipse, na lacuna. Obras de começo de carreira, não coligidas  pelo autor, nos ajudam a ver, futuramente, não apenas o rumo que buscava, mas o rumo que ele, ao amadurecer e entender com mais profundidade o que fazia, foi deixando para trás. 
 
 





2 comentários:

Anônimo disse...

Excelente. Incrivel a sencação que deu de envolvimento com o drama do conto. E a vontade de conhecer a narrativa inteira.

Fabyanno Gonçalves disse...

O tema principal da literatura machadiana é o favor, que é a relação de dependência e exploração característica da sociedade brasileira do século XIX.

Segue abaixo um trecho do Roberto Schwarz sobre o favor na obra do Machado de Assis:

"Faltando fundamento prático à autonomia do indivíduo sem meios - em consequência da escravidão o mercado de trabalho é incipiente -, o valor da pessoa depende do reconhecimento arbitrário (e humilhante, em caso de vaivém) de algum proprietário.

Neste sentido, penso não forçar a nota dizendo que Eugênia, entre outras figuras de tipo semelhante, encerra a generalidade da situação do homem livre e pobre no Brasil escravista.

Não sendo proprietários nem escravos, estas personagens não formam entre os elementos básicos da sociedade, que lhes prepara uma situação ideológica desconcertante.

O seu acesso aos bens da civilização, dada a dimensão marginal do trabalho livre, se efetiva somente através da benevolência eventual e discricionária de indivíduos da classe abonada.

Assim, se não alcançam alguma espécie de proteção, os homens pobres vivem ao deus-dará, sobretudo cortados da esfera material e institucional do mundo contemporâneo."

Se nós usarmos essa ideia como chave de interpretação do conto, podemos levantar hipóteses interessantes.

Não seria absurdo especular que o pai da moça poderia ter cometido o assassinato não para preservar a honra dela, mas sim para preservar a reputação do sinhozinho abusador e também a relação de dependência que unia aquelas duas famílias.

Os pontos da cena do crime que você mesmo apontou como inverossímeis, a moça desamarrada, uma faca de caça esquecida, um único sentinela, o pai mal amarrado, poderiam sugerir na verdade alguma combinação entre o pai da moça e o sinhozinho.

A conversa do pai com a filha, perguntando se ela realmente achava que a desonra seria uma grande desgraça, pode ser interpretada como uma última tentativa do pai para fazer a filha ceder aos desejos do sinhozinho.

Com o assassinato da moça, o crime original, a tentativa de abuso cometida pelo sinhozinho, fica esquecido.

A defesa judicial do pai assassino sendo custeada pelo pai do sinhozinho abusador completa o cenário.