domingo, 18 de agosto de 2024

5093) Drummond: "No Meio do Caminho" (18.8.2024)

 

 
No ano de 2010, quando se completaram 80 anos da publicação original de Alguma Poesia (1930), o primeiro livro de Carlos Drummond, comecei a fazer aqui um balanço desse livro, um registro meio informal, meio impressionista, comentando de poema em poema. Pelos meus cálculos, só falta um: este de hoje. 
 
(Nunca sei se meus cálculos merecem confiança, mas calculo assim mesmo. Sou um pouco como o Sheldon Cooper de The Big Bang Theory: “Vocês não acham que, se eu estivesse errado, eu perceberia?!...”) 
 
“No Meio do Caminho”, o famoso “poema da pedra”, é um dos poemas mais injustamente famosos de Drummond. Digo “injustamente” porque vejo muita gente a elogiá-lo  (o que é natural), mas não o vejo atraindo tanta atenção quanto “A Luís Maurício, Infante”, “Nosso Tempo”, “Caso do Vestido”, “A Máquina do Mundo”, “Os Ombros Suportam o Mundo”, “Campo de Flores”... 
 
Paciência. O poema da pedra despedaçou vidraças mentais pelo Brasil afora, estragou o piquenique lírico de muitos poetas e muitos leitores para os quais a poesia funcionava como uma espécie de arranjo-de-flores para botar no centro da mesa. Drummond admitiu mais de uma vez que não achava que o poema fosse grande coisa, e que a reação a ele o surpreendeu. 
 
Foi um dos poemas mais discutidos, mais insultados e mais escarnecidos de sua época. E, bem ou mal, são coisas desse tipo que fazem a fama de quem escreve. 
 
Drummond deu-se o trabalho de guardar uma enorme coleção de recortes e de citações da imprensa a respeito do poema. A coleção resultou no livro Uma Pedra no Meio do Caminho – Biografia de um Poema (Rio: Editora do Autor, 1967), um documento precioso sobre as idas e vindas dos juízos críticos sobre nossa literatura. 
 
Já escrevi aqui no Mundo Fantasmo sobre esse livro:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2009/12/1396-pedra-no-meio-do-caminho-492007.html
 
É um bom poema? É um poema ruim? É o maior poema modernista? É uma abominação? 
 
Não é nada disso, mas é um sintoma curioso de algumas situações presentes na história da Arte. Todo conceito de Arte (assim mesmo, com “A” maiúsculo) é totalmente subjetivo. Ninguém tem como afirmar, com objetividade científica, que a obra de arte X é genial e que a obra de arte Y é péssima. Não há critérios objetivos para medir isso. 
 
Por que? Porque os critérios estéticos são uma mistura do pessoal e do coletivo, são uma combinação entre o famoso “gosto pessoal” e as igualmente famosas “formas aceitas”, as formas que cada grupo social elege (e renova, periodicamente) como sendo importantes, significativas, belas, verdadeiras, etc.
 
O gosto artístico é um conjunto de critérios e opiniões, sempre em constante mutação, no interior de um conjunto de pessoas.  E esse conjunto é permanentemente comparado com os conjuntos cultivados no mesmo país, e até na mesma cidade. 
 
Quando surge uma obra que chuta o pau da barraca e desobedece de forma acintosa a essas formas aceitas, isso gera um ruído e um problema. Certos artistas fazem isso de propósito: “vim aqui para arrebentar os conceitos”, “vim desafinar o coro dos contentes”, “vim fazer chover no piquenique”, etc. 
 
Outros o fazem meio sem querer, como pode ter sido o caso de Carlos Drummond, que em sua fase inicial, aplicadamente modernista, cometeu alguns poemas até mais heréticos do que o da pedra, mas que não produziram o mesmo abalo. 
 
O poema piada, o poema gracejo, o poema rabisco-apressado, o poema trocadilho... tudo isso foi largamente praticado pelo poeta mineiro e seus amigos de geração – num tempo em que a “forma aceita” era o desabafo lírico-sentimental ou épico-grandiloquente. 
 
Toda forma de Arte é também uma zona de conforto, uma bolha de auto-suficiência, um território demarcado onde muita gente se dá bem porque sabe manejar a linguagem dominante. Quando aparece uma obra transgressora, que denuncia a inevitável artificialidade dessa linguagem, ou expõe seu caráter de mera convenção passageira, essa obra incomoda. É o garotinho da fábula denunciando que o rei está nu. 
 
E é de se esperar que esses transgressores sejam apedrejados, sejam barrados no baile, sejam banidos dos currículos, sejam sabotados na imprensa. 



Carlos Drummond dividiu seu livro-coletânea em várias seções, de acordo com o tipo de atitude ou abordagem. Críticas boas e ruins, ironias, elogios, insultos, ofensas, recusas irritadas, registros com bom humor... Tudo isso saudou o aparecimento do poema da pedra. 
 
Traduções, também. A seção “A pedra vai pelo mundo” transcreve versões em húngaro (Paulo Rónai), espanhol (Gastón Figueira), francês (Michel Simon), italiano (Ruggero Jacobi), alemão (Curt Meyer-Clason), inglês (John Nist) e vietnamita (Nguyén Ngoc Bich). 
 
Aqui, a versão em inglês de John Nist (em In the Middle of the Road, Tucson, University of Arizona Press, 1965): 
 
In the middle of the road was a stone
was a stone in the middle of the road
was a stone
in the middle of the road was a stone.
 
I shall never forget that event
In the life of my so tired eyes.
I shall never forget that in the middle of the road
was a stone
was a stone in the middle of the road
in the middle of the road was a stone.
 
Se quisermos ser criativos, em traduções assim, há uma certa latitude de movimentos, porque tanto pedra quanto caminho admitem ser poeticamente traduzidos por diferentes termos: stone, rock, pebble, etc. / road, path, way, etc. 
 
Nos meus tempos de roqueiro e parafraseador (mais que tradutor) diletante, cheguei a rabiscar: 
 
There was a rock on the road
on the road there was a rock
a rock
on the road there was a rock…
 
A pedra acabou, meio involuntariamente, somando-se a outras pedras famosas de nossa literatura: a Pedra do Reino, de Ariano Suassuna, a educação pela pedra e a “pedra do sono”, de João Cabral, a Pedra Bonita, de José Lins do Rego... 
 
O poemazinho despretensioso acabou retrocedendo a segundo plano.  Embora tenha se pregado de forma definitiva, na memória popular, à lembrança e à imagem do seu autor, a ninguém ocorre definir por ele a contribuição de Drummond à poesia brasileira. Há muito mais Drummond para um leitor mergulhar. 
 
  
 




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