Em “A Guerra dos Mundos” (H. G. Wells, 1898), o narrador passa algumas semanas fugindo à destruição dos marcianos e ao pânico dos terrestres, até que se oculta em algum lugar, e descansa. E diz:
Deitado ali naquela cama eu me surpreendi tendo pensamentos consecutivos – coisa que eu não me lembrava de ter experimentado desde a minha discussão com o padre. De lá até agora, minha condição mental tinha sido a de uma rápida sucessão de estados emocionais, ou então uma espécie de estúpida passividade. (trad. BT)
Um detalhe assim tem verossimilhança, porque de fato até então a vida desse narrador está em polvorosa, e as peripécias o estão levando a reboque, sem lhe dar tempo para respirar. O narrador sequer tem nome, é um mero “autor de obras filosóficas”, cujo refúgio campestre se transforma, de uma hora para outra, em campo de batalha de uma guerra que ele não previa.
Por entre atropelamentos, atropelos, pescoços quebrados, incêndios, colisões, explosões, carnificina, ele foge sabe Deus como, alimentando-se sabe-se lá do que. Um dos aspectos mais impressionantes desta história de Wells é o modo como ele mostra a fome das pessoas. Toda guerra impõe o reinado da fome.
Por sorte, o narrador tinha deixado a esposa em segurança na casa de parentes fora da zona de combate; mas aí ele tenta voltar, para testemunhar os fatos. E comenta ter visto, por entre o “salve-se quem puder” dos pais,“crianças excitadas, e, em sua maior parte, deliciadas com essa espantosa interferência nas suas atividades dominicais.”
Ariano Suassuna sempre comentava que aventura é tudo aquilo que é péssimo de viver mas excelente de contar depois. O melodrama literário se baseia justamente nisso: contar a um leitor pacato uma série de coisas com que ele não gostaria de se envolver por-dinheiro-nenhum. O que o leitor quer é a emoção vicária, a emoção emprestada por um personagens cujas aventuras ele vai viver durante algum tempo, sabendo que basta fechar o livro para estar de volta a sua poltrona classe-média, na sua casa intacta, onde há comida e conforto.
A aventura não deixa muito tempo para reflexões vagarosas, como bem percebeu H. G. Wells. A boa história de aventuras arrebata o leitor, não o deixa respirar, e muito menos refletir. Robert Louis Stevenson, que conhecia bem o gênero, supõe que o leitor comum “adora as narrativas rápidas”. Em outro ponto, ele especula: “Dizem também que as pessoas apreciam os acontecimentos, mais que os personagens; não estou muito seguro disto”.
Stevenson tem razão duplamente, a meu ver. Creio que existem os romances de enredo e os romances de personagem.
No primeiro caso, é a narrativa, a série de peripécias, que chama a atenção e arrebata as emoções do leitor, e de certo modo é secundária a questão “a quem aquilo tudo acontece”; poderia ser com qualquer um. É apenas um narrador confortável, que aceitamos sem dificuldade para o transcorrer da narrativa.
No segundo caso, é o personagem que arrebata consigo a identificação emocional do leitor. Os dois se fundem numa só consciência e daí em diante tudo que acontecer àquele personagem (ou àquele conjunto de personagens) torna-se interessante, porque o leitor o sente como se acontecesse a ele próprio.
Stevenson discute essas questões num artigo de 1885, “Popular Authors”, e coloca um peso considerável nesse processo de identificação. O personagem é o instrumento através do qual os leitores têm acesso ao mundo da aventura, ao mundo do perigo, às vezes ao mundo do luxo e da vida na alta sociedade, outras vezes ao mundo da violência e do crime. Diz Stevenson:
A imaginação (se ouso assim me exprimir) do escritor popular vem deste modo resgatá-los, fornecer um conjunto de circunstâncias a essas aspirações fantasmagóricas, e conduzir esses leitores aos lugares onde eles desejam ir. Onde desejam ir; esta é justamente a questão: não irão nem um passo além. (trad. BT)
Dizemos muitas vezes que a leitura de romances deve ter uma finalidade educativa, e confundimos essa finalidade com uma intenção educativa demasiado ao pé da letra. O romance deve educar: e assim dizemos que os livros de Jules Verne são aconselháveis, porque transmitem aos jovens (e esta era a intenção de Verne, e de seu editor, Hetzel) conhecimentos de astronomia, geografia, física, náutica, etc.
Vemos essa função também na volumosa literatura produzida no mundo inteiro com o intuito de inculcar no leitor valores éticos e morais, lições de auto-ajuda, mensagens de religião ou de patriotismo. Para quem cultiva esse tipo de literatura, tal critério se sobrepõe a todos os demais, inclusive os de “arte literária”.
A principal função “educativa” da literatura, entretanto, talvez seja a mais básica de todas: permitir esse estranho processo de empatia com um conjunto de personagens inventados.
(livraria em Londres sob bombardeio, 1940)
Nós, leitores, conseguimos achar esses personagens tão reais quanto nós mesmos, e dignos de nos servirem de avatares. Cada hora de leitura que lhes dedicamos é uma hora subtraída a nossa vida ativa, a nosso contato direto com o mundo. Essa hora silenciosa e concentrada, no entanto, nos enriquece com situações virtuais que geralmente não teríamos como experimentar em primeira mão.
Alguém pode dizer que o cinema cumpre a mesma função, e talvez com maior intensidade sensorial. A literatura de ficção, contudo, nos permite mergulhar no mundo íntimo dos personagens, pois ela verbaliza seus pensamentos, suas reflexões, suas suposições, toda essa mistura de percepção, emoção e razão em que nossa mente está constantemente mergulhada. Nenhuma outra forma de arte substitui, neste aspecto, a palavra escrita e a narrativa imaginada.
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