sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

5021) Algumas leituras de 2023 - 3 (12.1.2024)

 

(Algumas leituras do ano passado, alguns dos livros que achei marcantes por variados motivos; sem nenhuma ordem especial. Como sempre, incluo apenas livros que li do começo ao fim. Se eu fosse incluir todos os livros bons que comecei mas não li por completo, não ia ter espaço que coubesse.)
 


 
O corpo encantado das ruas (Civilização Brasileira, 2023), de Luiz Antonio Simas
O Rio de Janeiro que me atrai, e que mais me ensina, não é o do Pão de Açúcar, é o da Pedra do Sal. O Rio se divide entre a Rua e o Resto. O que mantém coesa esta cidade partida é sua cultura das ruas, o caldeirão fumegante de heranças e memórias, o canjirão farto e compartilhado, de coração aberto, com quem compartilha de coração aberto. Esta coletânea de crônicas é um pequeno clássico contemporâneo, já em 12ª. edição; Simas é um dos que mexem nesse caldeirão, e sei que posso chamá-lo de “professor de rua”, no sentido em que existem “músicos de rua”. Trabalhando sem pausa na zona crepuscular entre a memória oral-familiar-grupal e o ensino formalizado pelas escolas e pelas editoras, Simas é um dos muitos operários da missão de explicar “uma cidade fundada para expulsar franceses que um dia resolveu ser francesa para esconder que é profundamente africana”. 
 
 


“Un episodio en la vida del pintor viajero” (2000), de Cesar Aira
Aqui no Rio de Janeiro há um fã-clube informal deste escritor argentino, mas todas as vezes que me aproximei em busca de informações fui gentilmente escorraçado sob o pretexto de ser um leigo total. Fico feliz em afirmar que tal obstáculo foi removido. Este livro curtinho e intenso relata (glosa, amplifica, interpreta) um evento trágico na vida do pintor Rugendas, muito conhecido aqui dos brasileiros, mas que também viajou pintando por toda a América Latina. Cruzando o pampa argentino, Rugendas sofreu um acidente com seu cavalo e ficou com o rosto totalmente despedaçado, sendo forçado a usar máscara e a tomar doses enormes de morfina e outros remédios. César Aira conta essa história como uma espécie de delírio psicodélico desse alemão que entrou para a História do Brasil. 
 



Lunário Encourado (Itatiaia, Ed. do Autor, 2022), de Adiel Luna
Adiel é violeiro, embolador de coco, enredador de rimas, mestre-pastor de palco embandeirado, e tudo o mais que se imaginar; inclusive autor deste livro que Pedro Américo, na contracapa, descreve como “uma narrativa com 20 cantos ou movimentos”. Numa série de poemas com formatações variadas, mas sempre dentro da prosódia sertaneja, ele constrói passo a passo a vida de um vaqueiro, usando com abundância a terminologia local. Tal como Elomar Figueira de Melo, tem a precaução de acompanhar tudo com um glossário em doses medidas, página a página. Mais que um longo poema, é uma longa suíte de canções de apartação, de vaquejada, de cavalo rompe-mato, de namoro e dança. Como diz o narrador a certa altura (p.79): “Meu branco, regule! Tem cousa que munta gente diz: não consta no mundo. Já ôto chega e dí: -- Consta no mundo!”. 



Nací (Je suis né) (2022), de Georges Perec
Todo ano faço minha romaria à obra de Perec e leio um livro que não conhecia ainda. Li este ano Nasci, na tradução espanhola (Anagrama, Barcelona). É livro póstumo (Perec morreu em 1982), reunindo material inédito e disperso. Alguns textos são textos preparatórios para sua memória W ou a Memória da Infância (1975). Há transcrição de uma carta dele a Maurice Nadeau (um dos historiadores do Surrealismo), na qual ele enumera os projetos em que trabalha na época (1969); uma entrevista a Frank Venaille, e outros artigos curtos sobre literatura e memórias. “Los lugares de uma fuga” narra na terceira pessoa um episódio em que um garoto (ele) foge de casa, mas só se lembra disso depois de adulto; é calmo e arrepiante. “El salto en paracaídas” é um longo monólogo de improviso (gravado ao vivo, numa reunião, em 1959) em que ele compara o lançamento de uma revista a um salto de paraquedas. 
 
 
 
A arte do nevoeiro indelével (Campina Grande, Papel da Palavra, 2023), de Maxwell F. D.
Tenho observado cada vez mais a convivência pacífica, principalmente nos livros dos novos poetas, entre o verso livre/branco e o verso metrificado/rimado. Desde que me entendo de gente vejo um dos dois convidando para a missa de 7º. dia do outro, e por sorte continuam vivos e bulindo. Como vivem e bolem neste livro de estréia de Maxwell F.D., onde as formas fixas convivem em paz com o verso solto, algumas brincadeiras gráficas e trocadilhísticas, mas sempre denotando algo essencial e que nem sempre está presente em quem publica livros: o gosto pela palavra, a curiosidade pela palavra, o sabor de manejar a palavra e indagar tudo que ela pode dizer: “a luz que tinha era pouca / bruxuleava a chama / donde a fumaça emana / onde há fumaça há fogo / então vou lá descobrir / cavar, olhar, confundir / ao deixar tudo desnudo / eu sem querer clareei / as incertezas do mundo”
 


 
Chêne et Chien (1937), de Raymond Queneau
Outra romaria anual me leva todo ano à obra de Raymond Queneau (1903-1976), o intelecto mais bem-humorado da literatura francesa, que tende a ser tão constipada. O título “Chêne et Chien” alude às palavras de que se origina seu nome de família: “carvalho” e “cachorro”.  O livro é descrito pelo autor como um “romance em versos”, e é uma espécie de autobiografia psicológica numa série de poemas de formatos variados: livres, metrificados, com e sem rima. Queneau reconta sua vida com auto-ironia, e há uma sequência de poemas em que ele se reporta aos seus anos de psicanálise, de forma impagável: “E vejam que esse sacripanta / quer me fazer pagar por estas sessões. (...) Eu, o doente, insisto / em julgar esse psicanalista: / é um sedento, um rapinante, / um pobretão ávido de lucro / uma ratazana cheia de audácia / um salteador de estradas!”. 
 



O irreal e a suspensão da credulidade (Arribaçã, 2023), de W. J. Solha
W. J. Solha é um poeta privilegiado, um sibarita das letras, pois (ele mesmo o confessa) sua enorme e excelente produção literária é bancada integralmente por um circunspecto funcionário público, o bancário Waldemar José Solha, a quem o Banco do Brasil muitos serviços deve. Sua série de poemas-livro, caudalosos, whitmanianos, faz uma espécie de recenseamento das correspondências, relações, filiações, ecos e diálogos entre a pintura, a religião, a poesia, a história... Tenho comentado todos eles em meu blog, e este aqui é mais uma catadupa de imagens, de descobertas, de premonições: “E a humanidade – sempre antevendo o apocalipse – se sente, agora, a um lapso de ser eliminada pela Inteligência Artificial, / como o Homo Sapiens fez com o / Neandertal. / É a Terra se encaminhando / a seu objetivo / final”. 
Leia mais aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2023/10/4990-o-real-irreal-de-w-j-solha-9102023.html
 
 
 
Os gatos quando os dias passam (Ed. 34) – Thiago E
Livro de poemas com tema único é sempre um desafio arriscado. Sinto um livro de poemas como algo que vai aos poucos se ramificando em várias direções, ao invés de convergir para uma só. E atesto que Thiago Eh saiu-se com láureas dessa tarefa de encontrar novos dizeres e novas maneiras, em cada um desses poemas dedicados à raça alienígena que devagarinho está nos amansando. Como ele diz: “sem ser notado, um gato te acompanha / desde o parto – escondido pelo sangue / entre ombros e quadris em crescimento / fortaleceu alguns grupos de músculos /das pernas, do abdômen e dos braços / a fim de pôr teu corpo em quatro apoios / no chão, e assim brincar equilibrista / a criança descalça, hoje esquecida / que um felino lhe deu coordenação / quando bebê, enquanto nem podia / sequer supor o mais vago sentido / desta infantil palavra: engatinhar.” 
 


 
The Housekeeper and the Professor (2003), de Yoko Ogawa
Está sendo publicada aos poucos no Brasil a obra desta escritora japonesa. Ogawa tem uma forma oblíqua e interessante de contar suas histórias. Em muitos casos, elas abordam a relação entre uma mulher mais jovem e um homem mais velho, cada vez com diferentes dosagens de adoração, sadomasoquismo, vassalagem. Neste caso, uma governanta precisa cuidar de um cientista que sofreu um acidente e só lembra o que lhe aconteceu na última hora e meia. A dependência mútua entre eles cria uma afetividade gradual e distante, numa dinâmica relatada com voz impassível, e bruscas surpresas de vez em quando. 
Leia mais aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2023/10/4991-empregada-e-o-professor-12102023.html
 



Fábulas cabulosas e outras histórias subversivas (Rocco, 2022), de Henrique Rodrigues
O título dá uma idéia bastante próxima dessas historietas em que o autor revisita, da maneira irreverente, as mais conhecidas histórias infanto-juvenis, arrancando-as da noite aconchegante de seu contexto folclórico e trazendo-as, cara amassada, cabelo em desalinho, olhos piscando, para o meio-dia implacável do mundo atual. Atualizar histórias infantis tem sido um passatempo das décadas mais recentes, inclusive no campo da fantasia e do horror. Henrique Rodrigues as leva para o campo da crônica urbana atual, e as recheia com todo o linguajar (e conceitos) que atulham as redes sociais. De um lado temos Pinóquio, Branca de Neve, Pequeno Polegar e outros personagens, e de outro o jargão lacratório das redes: suas aventuras estão polvilhadas de “empoderamento”, “pertencimento”, “autoajuda”, “inclusivo”, “desconstrução”... O contraste entre arquétipos e clichês sempre rende boas risadas e boas reflexões. 
 

Transversais (Belém, Floresta Urbana, 2023), de Adriano Abbade
Uma das coisas que o Modernismo de cem anos atrás nos explicou foi que poesia lírica e registro prosaico podem ser complementares, fortalecendo-se mutuamente: a proximidade e o contraste faz ressaltar o que cada um tem de sensorial e de concreto. Adriano Abbade alterna poemas que lembram certas “notícias de jornal” de Bandeira ou Drummond, resgatando a beleza crua do banal da vida, e poemas de delicada percepção visual e sonora: “a poesia não está nesses versos / mas na cena que estes pretendem evocar / fim de tarde numa fazenda / generique miles davis a rolar / depois do vinho e da ganja / hae-mi levanta-se querendo dançar / despe o casaco / e a blusa branca / com as mãos cria uma ave /e tensiona com ela voar / seios beijando o vento / braços qual asa a planar / nua da cintura para cima / corpo de gaze aspirando ao luar / balé sem lastro / neste atordoante som / a leste cai a noite / em dourado azul neon.” 
 



Era apenas um presente para o meu irmão (Todavia, 2023), de Bruno Ribeiro
Um dos crimes mais cruéis da história recente da Paraíba? Pode ser, mas a concorrência a este título é tão grande que é preferível usar o termo consagrado junto à imprensa e ao público: “a Barbárie de Queimadas”. Em fevereiro de 2012, nessa cidade, um filho de uma família importante local ofereceu uma festa de aniversário ao irmão, e convidou algumas moças bonitas da cidade. O que elas não sabiam é que havia um “presente” para o aniversariante: no meio da noite, um bando de encapuzados invadiu a festa e começou uma longa sessão de estupros, de que o aniversariante e o organizador participaram. Duas das moças acabaram sendo mortas a tiros. Bruno Ribeiro usou este episódio para escrever uma reportagem corajosa (eu pelo menos não teria tido coragem de escrevê-la) sobre o mundo de hoje. 
Leia mais aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2023/09/4979-barbarie-de-queimadas-692023.html
 


Veja também:

Algumas Leituras de 2023 - parte 1

Algumas Leituras de 2023 - parte 2 


 






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