(Algumas leituras do
ano passado, alguns dos livros que achei marcantes por variados motivos; livros
sem nenhuma ordem especial. Como sempre, incluo apenas livros que li do começo
ao fim. )
Sombras na Relva (1960), de Karen Blixen (“Isak Dinesen”), trad. Maria Luiza Newlands (Ed. 34, 1992)
Estou dando-uma-geral na obra da escritora dinamarquesa cuja carreira tem um perfil único e invulgar. No ano passado, comentei a obra de estréia, que lhe deu fama, Sete Contos Góticos. Este ano li esta pequena coletânea de quatro textos memorialísticos, uma espécie de expansão de seu livro mais famoso, A Fazenda Africana. Blixen teve uma fazenda de café no Quênia, e é impressionante a visão dessa baronesa da Dinamarca andando de jipe, calçando botas, atirando em leões, contando histórias e, principalmente, convivendo com os quenianos de diversas nações. Principalmente os somalis, que ela descreve como “altivos e ingovernáveis”. No primeiro capítulo ela lembra do somali Farah, que foi uma espécie de mordomo em sua fazenda – um homem inescrutável, elegante, que falava inglês e francês, e administrava tudo com delicadeza e mão de ferro. Em “Barua Soldani” ela fala de uma carta que recebeu do rei da Dinamarca, e que depois de mostrá-la aos nativos estes começaram a atribuir poderes mágicos à folha de papel. Em “O Grande Gesto” ela comenta o esforço de cuidar da saúde dos “kikuyu”, que têm hábitos peculiares, e diz: “Cometi alguns erros muito graves, em que ainda hoje não consigo pensar sem consternação, mas estes aparentemente não abalaram meu prestígio; às vezes, acho que as pessoas gostavam mais de mim por eu não ser infalível. Essa peculiaridade dos africanos aparece em outros aspectos de suas relações com os europeus.” E em “Ecos das Colinas” ela reflete sobre os sonhos, e conta os longos anos de correspondência postal que manteve com seus ex-criados. Tudo que ela escreve vale a pena ler.
Há um sub-gênero do insólito que podia ser chamado ”Histórias de crianças ou pré-adolescentes que após a morte ou desaparecimento dos pais tenta continuar vivendo por conta própria, sem que o mundo perceba”. Muito longo este rótulo, então talvez caiba “Os Órfãos Independentes”. É o tema de A Menina no Fim da Rua (livro de Laird Koenig, filme de Nicolas Gessner), Todas as noites às 9 (livro de Julian Gloag, filme de Jack Clayton) e deste romance arrepiante de McEwan, que começa com a frase: “Eu não matei meu pai, mas às vezes tenho a impressão de que lhe dei um pouco de ajuda.” Jack, Sue e Julie são três adolescentes que após a morte do pai ficam cuidando da mãe doente e do irmão menor, Tom. São uma família isolada, sem amigos, que não se dá com os vizinhos. Julie, a mais velha, tem independência bastante para ir ao banco receber a pensão, fazer compras. Os três mais velhos vivem infernizando uns aos outros com brigas constantes e com jogos eróticos. A mãe morre, e agora a casa é deles.
McEwan é um escritor de enorme precisão narrativa, e coloca em cerca de 150 páginas uma história de sadismo infantil, fuga da realidade, estagnação social, naqueles bairros meio pobres onde não há vida comunitária, não há futuro, e as pessoas acabam inventando fantasias necrófilas para se distrair.
No departamento da poesia popular, registro este livro onde Jorge Filó dá uma amostra da convergência tradicional, mas que não é visível a todo mundo, entre o repente e o cordel nordestino, por um lado, e formas tradicionais, como o soneto. Para muitos críticos literários, repente e soneto são antípodas, porque instintivamente pensamos no primeiro como uma poesia oral cultivada nos pés-de-parede do Sertão, e no segundo como uma poesia refinada cultivada nos cafés da Rua do Ouvidor. Ledo engano, como comprova a obra do sonetista maior do Pajeú, João Batista de Siqueira, “Cancão” (1912-1982). Em Pecúlio, Jorge Filó traz uma caixa sortida de investidas poéticas onde tem décima, soneto, sextilha, poema longo e curto, poema irreverente e poema filosófico. Este último gênero tem raízes visivelmente filogênicas, pois o autor, que já conquistou brilho próprio, é herdeiro da linhagem do mestre Manoel Filó, de São José do Egito. Portanto... sai do meio que lá vêm os Filós: “O repente acelera o pensamento / cada verso retrata um sentimento / que nenhum outro ser, por si, revela. / A não ser um poeta improvisando / as belezas do mundo vislumbrando / do batente que Deus tem na janela.”
Este ano dei cabo desta excelente coletânea de três livros de contos de Bolaño, pela Ed. Anagrama (Barcelona). Bolaño é um escritor de prosa enganosamente descomplicada, que nos leva a participar de uma história a princípio totalmente comum e previsível mas aos poucos tudo vai se distorcendo numa direção ou noutra, e logo estamos dentro do insólito. Não o sobrenatural (raro nos contos dele), mas num universo de gangsters, mulheres fatais, atrizes de cinema pornô, colecionadores, adolescentes carrancudos, escritores na pindaíba, acadêmicos emproados, gente que reconhecemos no primeiro parágrafo em que surgem, mas que nos surpreendem poucas linhas depois.
Bolaño abre o livro com uma série de “Conselhos Sobre a Arte de Escrever Contos”, onde diz: “Nunca aborde os contos de um em um. Se alguém aborda os contos de um em um, honestamente, pode estar escrevendo o mesmo conto até o dia de sua morte. O melhor é escrever os contos de três em três, ou de cinco em cinco. Se se acha com energia suficiente, escreva-os de nove em nove, ou de quinze em quinze.”
Leia mais aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2023/04/4937-as-chamadas-telefonicas-de-roberto.html
https://mundofantasmo.blogspot.com/2023/10/4996-os-segmentos-de-estoria-de-roberto.html
Uma narrativa que mistura memorialismo e imaginação, um desses relatos em que a gente encontra a cada passo um pequeno marco confirmatório batendo com as informações biográficas sobre quem escreveu; mas basta isso para cancelar todo o restante, cancelar toda a parte textual baseada em improvisos, lembranças recauchutadas, memórias fugidias, reinterpretações, invenções por descuido ou por deliberação? A narradora está pesquisando a história das ditaduras militares na América Latina: Chile, Argentina, Brasil... É quando chega no Brasil que a trava emperra, porque aqui é mais fácil saber do tempo da ditadura através de obras literárias do que de obras escolares: “em 70 eu ainda nem tinha nascido, minha mãe e meu pai tinham onze anos, em muitas das nossas conversas, eu perguntava sobre a ditadura. mainha diz que era muito pequena e não lembra de nada. durou até 85, duas décadas, você se tornou adulta durante a ditadura. como não consegue lembrar? ela me olha sem entender. não diz uma palavra”. Acho que existe toda uma literatura hoje em dia, de jovens com a idade dos meus filhos, perguntando isso, como quem diz: Tudo bem, mas me fala: pra baixo de qual tapete isto foi varrido?
Este ano pude ver pela primeira vez alguns episódios da famosa série de TV “Perry Mason”, onde o advogado-detetive é interpretado por Raymond Burr (o ator que faz o assassino em Janela Indiscreta de Hitchcock). A série é divertida, com episódios curtos de ritmo frenético para a época (1957-66). Isto me motivou a ler esta curta biografia do autor, que eu tinha há anos. Gardner era uma máquina de escrever. No seu rancho na Califórnia, ele mantinha secretárias para quem ditava seus romances palavra por palavra. No início da carreira (diz Johnston) ele escrevia um romance por semana. Depois que ficou rico, tirou o pé do acelerador e passou a produzir um romance por mês. Seus livros policiais repousam no seu extenso conhecimento de filigranas jurídicas e de casos reais improváveis, que ele usava como ponto de referência para imaginar crimes onde uma pessoa inocente é acusada, recorre a Perry Mason para salvá-la, e ele o faz, descobrindo durante o processo quem foi o verdadeiro criminoso. Já li uns 30 ou 40 romances dele. A fórmula nunca falhou.
Tzvetan Todorov dizia que uma narrativa é fantástica quando, durante e após a leitura, somos incapazes de decidir se tudo aquilo foi uma interferência do sobrenatural ou foi apenas (por exemplo) uma alucinação do personagem. Este romance de Marcelo Ferroni narra uma daquelas claustrofóbicas histórias que transcorrem quase totalmente durante uma noite de medo e sofrimento, uma noite que o personagem pensa que nunca vai acabar. É uma “longa jornada noite adentro” de dois irmãos rivais e hostis cuidando do pai senil, no apartamento em que este vive, repleto de recordações do seu tempo de homem poderoso durante a ditadura. Pense numa noite em que tudo dá errado, a ponto do protagonista, Marco, começar a imaginar que seres do além estão interferindo para vingar-se da família. Marcelo Ferroni (disclaimer: Marcelo é meu editor na Alfaguara, e graças a ele traduzi H. G. Wells e Raymond Chandler) já fez incursões bem sucedidas pelo romance policial (Das paredes, meu amor, os escravos nos contemplam, 2014) e pela ficção científica (As maiores novidades, 2021, uma curiosa história de viagem no tempo ambientada no mundo corporativo). Este novo livro é a narrativa de um pesadelo cruel que aflige gente cruel e gente fraca.
Regarde les lumières, mon amour (2014), de Annie Ernaux
Fiquei gostando do estilo despojado de auto-ficção praticado pela ganhadora do Prêmio Nobel do ano retrasado. Este livrinho, em forma de diário, descreve sua experiências de frequentadora do supermercado Auchan. Os franceses são catalogadores e classificadores até a medula, sentem-se na obrigação de tudo classificar, tudo descrever, tudo interpretar. O livro de Annie Ernaux parece um olhar apolíneo e distanciado avaliando e julgando a experiência do consumo, a ética e a estética das gôndolas e dos caixas, a psicologia dos frequentadores. Entretanto, a certa altura ela começa a relacionar certas catástrofes ocorridas em Bangladesh, com milhares de mortos, e a empresa dona do supermercado.
Mais comentários aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2023/03/4919-o-supermercado-de-annie-ernaux.html
Marco Haurélio é neste momento um dos pesquisadores mais dedicados e mais confiáveis da nossa literatura oral. O fato de ser poeta e cordelista com obra própria (e muito pessoal) não interfere nessa atividade; antes o ajuda a perceber e preservar a riqueza de sonoridades, coloquialismos e variantes dialetais de que essa literatura é tão rica. Riqueza que às vezes se perde quando o estudioso e transcritor sente-se levado a traduzi-la para o linguajar do relato jornalístico ou para o do ensaio acadêmico, que muitas vezes tendem a ser pálidos e uniformes. Estes contos, colhidos em fontes primárias e cuidadosamente anotados, deverão agradar a leitores de Ítalo Calvino (Fábulas Italianas), Angela Carter (103 Contos de Fadas) e da obra inesgotável de Altimar Pimentel, Câmara Cascudo, Sílvio Romero e muitos outros.
Primo Levi declarava repetidamente que não era cientista e que não era escritor: era um técnico com formação em química. Não chamo a isto modéstia, a qual no mais das vezes não passa de auto-defesa de um Ego vulnerável; chamo auto-conhecimento, que em geral é uma conquista cara e sofrida. Vi há pouco o filme A Trégua (Francesco Rosi, 1997) que narra como Levi (1919-1987) sobreviveu a Auschwitz, e reconstitui sua tortuosa volta a sua Ítaca natal, Turim, após o fim da guerra. A Tabela Periódica se detém em outros episódios de sua vida, com a precisão verbal de um escritor e a imaginação meticulosa de um cientista.
Leia mais:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2023/07/4966-tabela-periodica-de-primo-levi.html
Martina no Vale do
Germânio (2023), de Eduardo Souza Lima
Vivo matutando sobre os caminhos até agora abertos pela ficção científica brasileira, e sobre as atitudes possíveis a um escritor brasileiro diante de um gênero dominado, quantitativa e qualitativamente, pelos autores de língua inglesa. (Spoiler: ainda não vejo solução.) Eduardo Souza Lima é crítico de cinema desde o tempo em que as barbas eram pretas, e neste seu romance de estreia adota o absurdismo fragmentário presente em outras obras nacionais recentes, com o Back in the URSS, de Fábio Fernandes. Um absurdismo com algo da sátira dos cineastas brasileiros que ao sucesso do seríssimo Tubarão respondiam com o escrachado Bacalhau. Ou o absurdismo com que os cineastas da Boca do Lixo paulistana canibalizavam cinema de Hollywood, cultura pop, marxismo de botequim, dramalhão latino-americano. Uma espécie de escracho reverente com que os artistas da indústria mais fraca homenageiam os da mais forte, enquanto lhes batem a carteira. Em suma: é uma ficção científica udigrudi. (Nem sei se o autor concordaria, mas eu sou como ele, não peço licença a ninguém.)
Vivo matutando sobre os caminhos até agora abertos pela ficção científica brasileira, e sobre as atitudes possíveis a um escritor brasileiro diante de um gênero dominado, quantitativa e qualitativamente, pelos autores de língua inglesa. (Spoiler: ainda não vejo solução.) Eduardo Souza Lima é crítico de cinema desde o tempo em que as barbas eram pretas, e neste seu romance de estreia adota o absurdismo fragmentário presente em outras obras nacionais recentes, com o Back in the URSS, de Fábio Fernandes. Um absurdismo com algo da sátira dos cineastas brasileiros que ao sucesso do seríssimo Tubarão respondiam com o escrachado Bacalhau. Ou o absurdismo com que os cineastas da Boca do Lixo paulistana canibalizavam cinema de Hollywood, cultura pop, marxismo de botequim, dramalhão latino-americano. Uma espécie de escracho reverente com que os artistas da indústria mais fraca homenageiam os da mais forte, enquanto lhes batem a carteira. Em suma: é uma ficção científica udigrudi. (Nem sei se o autor concordaria, mas eu sou como ele, não peço licença a ninguém.)
Este perfil biográfico pertence à coleção “Editando o Editor”, da EdUsp, e traça o perfil da minha amiga e editora Maria Amélia Mello. Além do relato saboroso de suas leituras, estudos, viagens, idéias editoriais brilhantes, o livro coloca esta questão tão interessante do olhar feminino sobre a atividade editorial. Discussão que não se esgota. Na ficção científica, por exemplo, existe uma copiosa bibliografia de artigos e ensaios a respeito de John W. Campbell (1910-1971), um editor que formatou a “Golden Age” da FC com suas qualidades, mas também com suas limitações e seu conservadorismo. E pouco se escreve sobre uma editora como Judith Merrill (1923-1997) e sua esplêndida série de antologias anuais (de 1956 a 1968) onde ela, com total conhecimento de causa, misturava ficção científica, fantasia, poesia e literatura mainstream. Os caminhos são sempre abertos por pessoas, cada qual com uma visão única, irrepetível, preciosa.
Leia mais aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2023/05/4947-editando-editora-maria-amelia.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário