A
descrição mais simples desse processo seria: “Improvisar é criar alguma coisa
sem planejamento prévio, criar em cima da hora, em tempo real.”
Mas o
que quer dizer “sem planejamento prévio”? Um músico de jazz que sobe ao palco
para dar uma canja num show de amigos pode já ter em mente o que vai fazer,
porque vai tocar uma música que já tocou antes, talvez com alguns daqueles
mesmos músicos, de modo que não começa rigorosamente da estaca zero. Ele pode
até planejar algo de forma meio abstrata. Pode pensar: “Naquele trecho que faz
assim-assim eu vou tentar acelerar as notas no início, mas a cada passada vou
diminuindo a velocidade, e no final tentar criar uma frase qualquer em cima de
tais ou tais notas...”
Ou seja:
ele planeja, mas não planeja exatamente.
Planeja em linhas gerais. Os detalhes serão resolvidos no calor do momento.
Pode
ocorrer também que depois de tocar esse número alguém da platéia, ou da própria
banda, sugira: “Agora vamos tocar XYZ.” E começa uma música que ele desconhece,
num tom diferente, compasso diferente, e é aquele momento em que a gente olha e
o cara está de pé no palco, à espera, deixando a música correr, o olhar baixo,
concentrado, assimilando tudo, até chegar o instante em que ele ergue o
instrumento e começa a tocar.
Num caso
assim deve ser improviso mesmo, ainda mais se a música for desconhecida, uma
canção que ele nunca tocou, nunca sequer ouviu. Como ele pode improvisar,
então? Ora, nenhuma música é produzida da estaca zero. Toda música, por mais
original que seja, passa por sequências de acordes que geralmente já são conhecidos
por ele. Cabe a ele descobrir e tocar, em cima da hora, um fio melódico cujas
notas se harmonizem com aqueles acordes subentendidos, que vão se sucedendo em
sua mente à medida que são tocados pela banda.
Se for
uma sequência complexa demais, talvez nem dê para ousar muito nessa
improvisação – o simples fato de conseguir improvisar uma melodia que não entre
em choque com os acordes nem com o “tempo” já é uma pequena façanha. É como no
atletismo o cara completar um “100 metros com barreiras” sem derrubar nada, não importa quanto tempo levou.
Deve ser
neste sentido que um cantador de viola me disse, muitos anos atrás: “Para
improvisar é preciso muito boa memória”. "Por que?", perguntaria alguém. Se é
improviso, é uma coisa totalmente nova, então depende mais da imaginação do que
da memória, não é mesmo? Sim e não. A imaginação vai atrás. A memória
vai na frente, fornecendo as matérias primas. Versos são frases, e sextilhas
improvisadas oscilam o tempo todo entre os produtos da imaginação (um verso
original, criativo, brilhante, que ocorre ao poeta no calor do entusiasmo) e os
da memória – aquelas linhas ligeiramente burocráticas, sem muita poesia, que é
preciso continuar dizendo para completar os versos.
Quando
numa cantoria de viola a gente dá um mote, às vezes os cantadores olham o
papelzinho escrito, deixam ali na frente, enquanto estão cantando outras
coisas, mas mentalmente a cabeça já vai escolhendo rimas, separando, preparando
frases. Quando começam a cantar pra valer, quanto tempo tiveram para se
preparar? Alguns minutos?
Improviso
não quer dizer instantaneidade. Algum tempo de preparação tem que haver antes
do “improviso” ter lugar.
Isso nos
leva a conceitos mais largos, como o de improvisação no cinema. Como improvisar
na feitura de um filme? Num filme, o roteiro e o cronograma de filmagens são
preparados meses antes. Na hora, é só chegar e executar a idéia que alguém
botou no papel, e que já foi lida, discutida e assimilada por toda a equipe.
Como improvisar?
Bem,
aqui é onde entra a vida real com suas armadilhas. Planejamento de filmagem não
é linha-de-montagem de fábrica, onde cada estágio, cada tarefa é executada
mecanicamente, sempre da mesma forma. Visto de maneira mais realista, um
roteiro e um plano de produção são sempre “cartas de intenções”. É como se
dissessem: “No dia tal, vamos tentar gravar isto aqui, desta maneira.” Porque os imprevistos e
as surpresas são mais frequentes do que se imagina.
Já vi
casos em que na véspera de uma cena o ator quebrou e engessou a perna. A cena
foi improvisada na manhã seguinte, e tudo que ele iria fazer andando foi
reescrito para que fizesse sentado, e filmado da cintura para cima. (Às vezes
dá. Às vezes não.)
Já vi
ator cortar a mão num caco de vidro e, sem interromper a filmagem, usar a mão
ensanguentada como parte da cena.
Já vi ator
estar fugindo apavorado, tropeçar, cair, levantar-se rindo, olhar para a
câmara, fazer cara de apavorado de novo e continuar correndo.
Quando
alguém grita: “Ação!...” ou “Rodando!...”, tudo vira uma questão de vida ou
morte. Claro que sempre existe a opção do take 2, take 3, take 4... Mas às
vezes nunca se consegue repetir exatamente as coisas boas que aconteceram no
take anterior, e cada “Rodando!...” é sempre um salto no escuro.
Um salto
no improviso, porque mesmo quando se repete algo o fato de ser uma repetição
coletiva introduz novos ruídos, novas interferências – pense cena de briga,
cena de multidão, cena que envolve animais ou que é filmada na rua... Mesmo que
tudo ocorra como foi planejado, é preciso estar sempre pronto para improvisar.
E para
reconhecer o bom improviso. Já vi casos em que na conclusão de uma cena a atriz
resolveu executar um gesto ou uma caminhada que não tinha feito nas vezes
anteriores e o diretor, apressadinho, não percebeu e gritou “Corta!...”,
olhando para o relógio... e o complemento perfeito se perdeu.
Tudo
isto ainda está no capítulo de coisas improvisadas num espaço de segundos ou de
minutos, como no jazz e na cantoria.
Existe
também a necessidade de improvisar em larga escala. Quando se tem horas, dias
inteiros para pensar, mas se está mexendo com algo tão coletivo e tão complexo
que o que se cria nesses dias equivale a meses de preparativos.
Nas
vésperas da filmagem, a locação combinada não está mais disponível, por alguma
razão. A cena que ia acontecer num shopping vai ter que ser feita numa praça.
Prancheta em punho, as pessoas traçam o novo posicionamento das câmeras, do
som, e os deslocamentos dos atores. “Ah, não temos mais o parque, mas temos a
praia”. Muito bem, vamos re-desenhar tudo e filmar na praia as cenas do parque.
É
improviso também? Por mim, é, até porque todo o pessoal envolvido já tinha se
preparado mentalmente para fazer a cena no espaço “X” e agora vai ter que se
adaptar ao espaço “Y”, e não é tão fácil quanto parece para quem está de fora.
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