sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

4554) O Klingon e as atividades sem propósito (28.2.2020)




O que é uma atividade sem propósito?

Um sentido possível: uma atividade que provavelmente não terá utilidade para ninguém. Exemplo: alguém desenhar um triângulo em cada poste elétrico, quando andar pelas ruas.

Dois: uma atividade meio boba, realizada apenas por diversão ou desfastio. Exemplo: alguém anotar as formas que vê nas nuvens do céu: camelo, castelo, baleia, chapéu...

Três: uma atividade que pode até vir a ser útil, mas a própria pessoa que está fazendo não sabe para que serve. Exemplo: alguns ramos da Matemática Pura.

A civilização humana foi construída através de projetos conscientemente concebidos e executados, mas há muita coisa feita sem nenhum propósito específico e que com o tempo acabou se tornando útil, sem que ninguém tivesse previsto.

Um exemplo muito conhecido, e que sempre me volta à memória, é o de Thomas Edison, ao inventar o fonógrafo. Ele considerava que a gravação da voz humana seria utilíssima para o estudo de idiomas, o que não deixa de ser. Usar os discos fonográficos para a reprodução (e a venda em massa) de canções populares foi uma utilização que só lhe ocorreu bem depois. Não fazia parte do mundo em que ele vivia.

Quando o fonógrafo “foi pras ruas”, logo foram encontradas outras utilidades para ele.

Embora o utilitarismo pareça mandar no mundo, grande parte de nossas atividades mais sérias e mais exigentes se dá sem que a gente imagine para que aquilo vai servir algum dia. 

Ocorre na Matemática, por exemplo: um matemático do século 19 inventa uma forma de organizar certos cálculos, capazes de lidar com números complexos, etc.  Não sabe para que pode servir, mas sabe que funciona. No século 20, um físico ou um biólogo ou um economista se depara com um problema complicado, mas que é possível reduzir a números: e descobre que o modo ideal de calcular aquilo fora inventado cem anos antes, praticamente “no escuro”.


(Minkovski e Einstein)

Ocorreram fatos assim na carreira de Einstein, se não me falha a memória. Ele próprio admitia que seus recursos matemáticos eram limitados, pelo menos para se igualarem ao alcance espantoso de suas intuições sobre o universo físico. Há um episódio em que o matemático Minkovski veio publicamente em socorro dele, exibindo cálculos que ele próprio, Minkovski, tinha desenvolvido, cálculos capazes de confirmar matematicamente o que Einstein estava descobrindo.

Quando as teorias de Einstein sobre as distorções do espaçotempo começaram a “estourar as costuras” da Geometria vigente, chegaram às mãos dele as chamadas geometrias não-euclidianas de Lobatchevsky (1793-1856) e de Riemann (1826-1866), que até então muita gente considerava apenas curiosidades, façanhas intelectuais sem serventia coletiva.

É como se os matemáticos dissessem: a Natureza, o mundo físico, tem um zilhão de processos que não somos capazes de avaliar, de calcular, de controlar. Mas quando inventamos um tipo de cálculo ou de controle lógico, mais cedo ou mais tarde ele acaba sendo visto como a melhor descrição de algo que acontece nos átomos, ou nas células do corpo.


Ou nos processos econômicos. Lembro o filme Uma Mente Brilhante (“A Beautiful Mind”, Ron Howard, 2001) com Russell Crowe, onde ele faz o matemático John Nash, que era esquizofrênico e genial. Algumas fórmulas propostas por Nash só se revelaram úteis, para o estudo da Economia, muitos anos depois de publicadas, quando ele já estava meio mergulhado na doença. Sua teoria dos jogos não-cooperativos, descrita em um trabalho de 1950, lhe valeu o Prêmio Nobel de Economia 44 anos depois.

É como se a Matemática produzisse respostas e estas ficassem arquivadas à espera da pergunta correspondente. O que faz sentido, se virmos o trabalho científico com os olhos de Einstein, para quem o que faltava à Ciência não eram respostas certas, mas perguntas novas. Muitas dessas perguntas (ele deve ter pensado) iriam ter respostas já prontas, descobertas importantes mas que até então ninguém sabia para que servia.

Um exemplo em que sempre penso como “atividade inútil” é a criação de idiomas artificiais, tão classificativos e cheios de regras que ninguém se daria o trabalho de entender sua gramática. Paulo Rónai dedicou o livro Babel e Anti-Babel (Ed. Perspectiva, São Paulo) a esses indivíduos meio excêntricos, dos quais o mais bem sucedido parece ser o Dr. Zamenhof, que criou o Esperanto.


O idioma Klingon surgiu de maneira diferente: foi inventado com o propósito de mostrar como falavam os alienígenas Klingon na série “Star Trek”, e foi falado pela primeira vez no filme Star Trek: The Motion Picture (1979). Está claro que para os produtores e todos os artistas envolvidos a língua klingon tinha um propósito muito claro. Era um detalhe a mais de verossimilhança para encorpar um universo ficcional. Como a linguagem dos elfos criada por Tolkien em O Senhor dos Anéis.

The Klingon Dictionary foi publicado em 1985 por Marc Okrand, o linguista contratado peça produção de “Star Trek” para inventar o idioma daqueles alienígenas de testa gigantesca.  Desde então, o Klingon Language Institute já publicou traduções em klingon de obras clássicas como Hamlet, A Epopéia de Gilgamesh e o Tao Te King.

Uma linguagem sem povo, à espera de quem a utilize.









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