segunda-feira, 2 de março de 2020

4555) A arte do paradoxo (2.3.2020)




O paradoxo é uma das mais sutis figuras de estilo, e consiste basicamente em dizer ao mesmo tempo uma coisa e o contrário dela.  É uma frase que detona a si mesma, que se contradiz com firmeza e em voz alta. 

Parece um contra-senso mas, dito da maneira certa (e lido da maneira certa) acaba parecendo a única maneira correta de dizer aquilo.  Carlos Drummond faz a narradora do seu “Caso do Vestido” dizer às filhas:

Vosso pai sumiu no mundo.
O mundo é grande e pequeno. 

É uma contradição? Sim e não.  O mundo é grande o bastante para que as pessoas vão embora e nunca mais regressem, mas também é pequeno o bastante para que as pessoas voltem a se encontrar. 

O uso desta imagem ganha reforço para o leitor habitual de Drummond, que no “Poema de sete faces”, já no seu livro de estréia, dissera:

Mundo mundo vasto mundo
mais vasto é meu coração.

E depois, em “Mundo grande” aduziu:

Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores. 

Desse modo, termos como “grande” e “pequeno” tornam-se relativos, maleáveis, quase intercambiáveis.  Tudo é grande e pequeno ao mesmo tempo.

O paradoxo deixa claro para o leitor que leituras ao pé da letra são arriscadas; que é preciso negar a meras palavras qualquer valor absoluto; que numa frase dessa natureza a mesma palavra pode estar sendo usada com dois sentidos diferentes. 

Para as pessoas que insistem na interpretação ao-pé-da-letra de tudo que ouvem (aqueles que Nelson Rodrigues chamava “os idiotas da objetividade”), um paradoxo é um erro, um contra-senso.  Quando Carlos Drummond diz: “Ganhei (perdi) meu dia”, o leitor-ao-pé-da-letra sente-se na obrigação de perguntar: “Mas afinal, ganhou ou perdeu?”


(G. K. Chesterton)

A Inglaterra nos fins do século 19 foi um ambiente literário fértil para o paradoxo.  O romancista e ensaísta G. K. Chesterton (1874-1936) foi um dos que o cultivaram com mais brilho.  Em seu livro Ortodoxia está a frase famosa: “Um louco não é um homem que perdeu a razão.  O louco é um homem que perdeu tudo, exceto a razão”. 

Chesterton mostra um louco como alguém que perdeu o sentido real das coisas, mas não a capacidade de raciocinar.  A razão do louco é “uma razão sem raízes, uma razão no vácuo”.  Ou seja: razão sem princípios morais.  Aliás, foi também Chesterton quem disse: “Se não Deus não existisse, não existiriam os ateus”.


(Oscar Wilde)

Contemporâneo de Chesterton, Oscar Wilde (1854-1900) foi um desses intelectuais que frequentam a alta sociedade e sempre têm na ponta da língua uma frase espirituosa.  Muitas vezes seu improvisos de maior sucesso eram incorporados às suas peças teatrais, que faziam mais sucesso ainda.  Ali ele celebrizou paradoxos famosos como “Sou capaz de resistir a tudo, menos a uma tentação” ou “A vida imita a arte muito mais do que a arte imita a vida”, ou ainda “Só há duas tragédias na vida: não conseguir o que se quer, e consegui-lo”. 

A linguagem literária usa a contradição criativa – e os aforismos, epigramas e frases de efeito que as pessoas trocam no seu dia-a-dia, em festas, reuniões sociais, etc., são linguagem literária, mesmo que surjam em conversas de salão, e não em livros escritos.  São fragmentos de literatura oral, improvisados, desvinculados de uma estrutura maior (conto, poema, etc.), mas sua função é literária. 

Quando ocorrem em obras literárias propriamente ditas, reconhecemos ali um modo de dizer as coisas que ecoa nossa linguagem cotidiana, onde a função afetiva pesa mais que a função denotativa. 


(Guimarães Rosa)

Vemos em Guimarães Rosa frases como “Tudo o que é bom faz mal e bem” (“Esses Lopes”) ou então “Nem alegre nem triste, apenas o oposto” (“Palhaço da boca verde”).  Esta última nos remete de imediato para o verso famoso de Cecília Meireles, que Rosa decerto conhecia: “Não sou alegre nem triste: /  sou poeta”.  A formulação de Rosa é linguisticamente mais precisa, e entrega o jogo, por assim dizer. O contrário de “alegre” só é “triste” de um certo ponto de vista.  O que Rosa nos sugere é que existe um modo de ser (“Insensível”? “Sereno”? “Cerebral”?) que é o oposto da tendência a alegrar-se e entristecer-se.

O paradoxo pode servir também para relativizar conceitos subjetivos, como faz Nelson Rodrigues quando diz que “o dinheiro compra tudo, inclusive amor sincero”.  É como se dissesse que a existência do dinheiro e a do amor sincero são incompatíveis, que as duas coisas não podem existir no mesmo mundo. 

Já Vinícius de Morares dizia do amor: “que não seja imortal, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure”.   A infinitude não é entendida aqui como a não-cessação do sentimento, e sim como uma intensidade tal de sentimento que o faz prolongar-se, de outra maneira, mesmo depois que cessa de existir.  É uma idéia retomada por Drummond quando diz: “Eterno é tudo aquilo que vive uma fração de segundo / mas com tamanha intensidade que se petrifica e nenhuma força o resgata” (“Eterno”), ou “deixaram de existir, mas o existido / continua a doer eternamente” (“Destruição”). 

Na prosa, o paradoxo serve frequentemente para a ironia, o sarcasmo ou outra forma de linguagem crítica, usada para desvendar ou desmascarar contradições alheias. 

Na poesia lírica, serve muitas vezes como revelação da contradição íntima do poeta, que quer ao mesmo tempo duas coisas conflitantes, ou que se vê forçado a admitir duas emoções incompatíveis.  O paradoxo lírico revela que somos contraditórios, que nossa mente se divide com facilidade, que nossos sentimentos (e mesmo os nossos princípios morais) estão frequentemente em choque uns com os outros.  E se a literatura não reproduzir isto, quem o fará?





(Uma versão ligeiramente diferente deste artigo foi publicada na revista Língua Portuguesa, Ed. Segmento, São Paulo, # 58, agosto de 2010.)












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