sexta-feira, 20 de maio de 2016

4116) Os momentos philipkdickianos (20.5.2016)



(ilustração: Jeff Drew)

É uma espécie de gíria interna entre nós, leitores, tradutores, críticos, que curtimos a obra do criador de Blade Runner e do Homem do Castelo Alto.  “Momentos Philip K. Dick” ou philipkdickianos são aqueles momentos de flagrantes quebras da realidade. Momentos em que a pessoa imagina ter cruzado um portal, uma zona de transição entre dois universos que coexistem à revelia um do outro, mas sob certas circunstâncias podem se tocar, podem permitir a passagem de alguém numa direção ou na outra.

Ou duas narrativas conflitantes, dois grupos de pessoas que, mesmo misturadas umas às outras, afirmam pertencer a universos diferentes. Cada qual explica as coisas e os fatos à sua volta com uma narrativa histórica totalmente coesa em si, mas irredutível à narrativa do outro. As duas se excluem mutuamente. Alguém ali está num universo a que não pertence. É assim com as pessoas que um acidente nuclear transporta para dentro do mundo mental de cada uma delas, sucessivamente, em Eye in the Sky, ou o solteirão desocupado de Time Out of Joint (1959), que vive de favor na casa da irmã e do cunhado, e que um belo dia tem uma revelação maior e mais apocalíptica do que a de Truman Burbank em The Truman Show, se bem que de natureza semelhante.

Momento Philip K. Dick é quando você chega numa esquina onde não passa há um mês e vê que a costumeira calçada escura e esquisitona está agora coberta de mesas sob o resplendor de luzes fluorescentes e vidraças de bares cheios de uma rapaziada bebedora que parece ter nascido ali. Rupturas inesperadas do continuum espaçotempo a que a gente estava domesticado.

Nada porém, caracteriza melhor esses momentos do que os pequenos detalhes que não batem, as coisas insignificantes, adereços de cenário, props, mas que para nós exprimem o que o mundo real tem de mais sólido, opaco, desinteressante, confiabilíssimo. O cara mora naquela casa há anos, entra no banheiro, às escuras, estende a mão para pegar o cordãozinho de fio pendurado junto à lâmpada, para acendê-la, aí se detém e pensa: “Peraí! A luz daqui sempre acendeu com interruptor! Por que eu lembrei tão vividamente que era um cordão com uma ‘pera’ pendurada?”

Que importa se a Terra está em guerra com a Lua, ou com mais alguém. Afinal de contas, é mais fácil se acabar o bar da esquina do que um país inteiro, mas o mundo está cheio de bares com mais longevidade do que algumas grandes potências ou impérios. O país pode se dissolver no ácido da ambição alheia, mas o interruptor da luz precisa ser o mesmo, o degrau quebrado da escada ainda é o terceiro do segundo lance, o meu botão de elevador é o penúltimo, a bandeira esportiva na parede da sala é aquela e não outra. Esse mundo é meu. Mas se mexem nesses detalhes tão banais, tão pessoais, aí sim, nosso senso do real fica prejudicado. Sentimos que “o próprio tecido do espaçotempo” está se esgarçando pelo forçar da nossa passagem.

Louis Pauwels, co-autor do clássico O Despertar dos Mágicos, onde propõe o conceito de Realismo Fantástico, exemplificou uma vez (creio que na antiga revista Senhor) como o Fantástico surge muitas vezes por uma diferença de percepção. Vemos algo impossível e segundos depois nossa mente corrige nosso olho: “Não, não é isso, é isto aqui”, e às vezes basta mudar um pouco de posição para ver que sim. Pauwels conta que num dia de nevoeiro cerrado ele caminhava ao ar livre, numa neblina que só permitia enxergar no raio de um metro ou pouco mais. De súbito emerge um corvo voando lento, à altura do seu rosto. Ao se deparar com ele, o corvo solta um grito aterrorizado e desaparece num voo pânico numa direção qualquer. Pauwels diz que o corvo achou que estava voando na camada alta que lhe era costumeira, de modo que, do ponto de vista dele, surgiu no ar um homem caminhando a vinte metros de altura. Daí o terror. “Ele viveu um momento de Realismo Fantástico”, dizia o autor.

Dick usava isto extensivamente, mas era um assunto tão importante para ele que ele nunca deixava de imaginar novas circunstâncias num enredo. Momentos philipkdickianos são o transe zen do personagem de O Homem do Castelo Alto, segurando um objeto e através dele sendo transportado para um mundo paralelo. É também um leit-motif recorrente de suas histórias: o instante em que alguém enxerga a si mesmo (corpo, comportamento, evidência externa) e percebe ser um andróide ou equivalente. Há um momento clássico em Time Out of Joint, quando o personagem, na piscina de um clube num dia de sol, dirige-se para uma barraca de refrigerantes e ao fazer o pedido tem uma espécie de vertigem, fica tonto, e quando se recompõe vê-se diante de um espaço vazio, e no chão está pregada uma folha de papel dizendo “Barraca de Refrigerantes”.

Momento Philip K. Dick mesmo vai ser quando eu um dia pensar: sim, mas me diga uma coisa, o que é que eu estou fazendo aqui neste lugar, a esta hora, com esta roupa, e por falar nisso, quem sou eu?





Um comentário:

Paulo Rafael disse...

Murakami tem uns momentos assim, já leu?
Abraços.