Doze Contos Peregrinos (Record, 2007, 17ª.
Edição, trad. Eric Nepomuceno; edição original, 1992), de Gabriel Garcia
Márquez, reúne histórias cuja gênese e execução ele comenta num curioso
prefácio. Os contos são, pela ordem:
Boa Viagem, Senhor Presidente (1979)
A Santa (1981)
O Avião da Bela Adormecida (1982)
Me Alugo Para Sonhar (1980)
“Só Vim Telefonar”(1978)
Assombrações de Agosto (1980)
Maria dos Prazeres (1979)
Dezessete Ingleses Envenenados (1980)
Tramontana (1982)
O Verão Feliz da Senhora Forbes (1976)
A Luz é como a Água (1978)
O Rastro do teu Sangue na Neve (1976)
Algumas
das histórias do livro acompanham personagens idosos em jornadas sofridas, meio
sem sentido, mas que são o que a vida lhes deixou: um homem conduz por toda
parte um ataúde com a filha pequena morta e preservada, para que o Papa a
santifique; uma mulher quer apenas ver o Papa e depois morrer; uma mulher idosa
ensina seu cão a ir sozinho visitar o túmulo onde ela um dia será enterrada; um
ex-presidente caribenho, agora na obscuridade, é paparicado por um casal
interesseiro de jovens conterrâneos. As pessoas sonham com futuros improváveis
que acabam acontecendo, só que de uma maneira mais improvável ainda. Sonham
umas com as outras, como os personagens de “Olhos de Cão Azul” (1947), um dos
meus preferidos entre seus contos mais antigos.
Escritos
todos após os 50 anos do autor, não admira que a velhice esteja presente em
muitos deles. A velhice que faz um homem perder o poder total, faz uma mulher
perder (ou julgar perder) o poder de despertar desejo num homem, faz um homem
se satisfazer em sonhar com uma mulher linda enquanto ela dorme ao seu lado. “O
Avião da Bela Adormecida”, cujo protagonista passa a longa noite de um voo
transcontinental junto da “mulher mais bela da minha vida”, prefigura a
adoração platônica que Márquez exploraria em Memória das Minhas Putas Tristes (2004), até mesmo a epígrafe
japonesa desse livro, quando ele diz: “Na primavera anterior havia lido um
bonito romance de Yasumari Kawabata sobre os anciões burgueses de Kyoto que
pagavam somas enormes para passar a noite contemplando as moças mais bonitas da
cidade, nuas e narcotizadas, enquanto eles agonizavam de amor na mesma cama.”
Garcia
Márquez tem seu nome sempre ligado ao realismo mágico, mas talvez o único conto
no livro que lembre este gênero seja o belo e delicado (mas sem grandes
peripécias) “A Luz é como a Água”, que lembra alguns contos de Ray Bradbury, um
autor com quem Márquez tem numerosas afinidades. Há um conto fantástico da
velha estirpe, “Assombrações de Agosto”, uma história de castelo assombrado por
fantasma, que se desenrola meio mecanicamente até a surpresa no último
parágrafo, capaz de fazer empertigar-se o leitor mais sonolento.
Um
tema notável, não lembro se muito frequente nos contos de Márquez, é o da morte
violenta, inexplicável, deflagrada como que pela queda aleatória de um raio.
Márquez, como todo amante do melodrama, adora projetar seus personagens em
situações-limite das quais muitas vezes eles não escapam. Não se trata porém de
tragédias convencionais: há um mistério inquietante na ausência de pistas com
que ficamos após a morte brutal de certas pessoas em “Me Alugo Para Sonhar”,
“Dezessete ingleses envenenados”, “Tramontana”, “O verão feliz da senhora
Forbes”, “O Rastro do Teu Sangue na Neve”.
“Só
vim Telefonar” é um conto kafkeano capaz de provocar risadas nervosas; eu chamo
a este subgênero “Histórias de Pessoas Que Tentam Ir Embora de Um Lugar e Não Conseguem”. Analisei esse
subgênero no capítulo “Os Infortúnios da Vontade”, em minha antologia Contos Fantásticos no Labirinto de Borges
(Casa da Palavra, 2005), se bem que no conto de Márquez há circunstâncias
concretas bastante explicáveis infernizando o destino da protagonista.
No
prefácio, Garcia Márquez fala da dificuldade que sente em escrever contos
curtos (com um argumento usado, sem muita mudança, por Tim Powers, para
explicar porque escreve romances enormes e produz poucos contos):
“O esforço de escrever um conto curto é tão intenso como o de começar um romance. Pois no primeiro parágrafo de um romance é preciso definir tudo: estrutura, tom, estilo, longitude, e às vezes até o caráter de um personagem. O resto é o prazer de escrever, o mais íntimo e solitário que se possa imaginar.”
O autor diz que os contos
ficaram muitos anos em estado de anotações num caderno, e que depois trabalhou
em todos quase simultaneamente.
“A escrita tornou-se então fluida, e tanto que às vezes me sentia escrevendo pelo puro prazer de narrar, que é talvez o estado humano que mais se parece à levitação.”
Fala
quem sabe. Escrever é como andar de monociclo numa corda-bamba. Parece
impossível, porque depende da conjugação de variáveis muito delicadas, e
qualquer soprozinho pode fazer tudo vir abaixo. Mas existe aquele momento
extraordinário onde as idéias geram formatos-de-frases e nesses
formatos-de-frases as palavras se encaixam como que por encanto e a mente do
escritor vira uma linha de montagem onde trabalham, num só ritmo e numa só
excitação, várias mentes contíguas e comunicantes: a mente que concebe o fato,
a mente que intui a forma necessária de contar o fato, e as palavras certas,
para não falar nos dedos que digitam. “Levitação”. Fala quem sabe.
Um comentário:
"A luz é como a água" é meu favorito, talvez pela beleza das imagens do conto. (Esse post vai me fazer tirar o livro da estante outra vez.)
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