Posso explicar como fiquei amigo de Dona Fiorina, logo eu.
Eu morava num prédio do Catete e mudei para Laranjeiras. Registrei a mudança no
correio do Largo do Machado, mas, macaco velho, mandei também uma cartinha
muito gentil aos próximos inquilinos do meu cafofo, pedindo que se chegasse correspondência
em meu nome me ligassem no fone tal e tal. De vez em quando ela ligava avisando
que chegara alguma coisa. Eu passava lá num horário combinado, tomava um
cafezinho e pegava o que havia.
Dona Fiorina brilhava numa raia distante do espectro
político, mas era ex-professora, culta, adorava cinema de arte. Aprendi, nesses
cafés que às vezes se prolongavam à custa de biscoitos e croissants, que nosso
objetivo final era o mesmo. Um Brasil justo, democrático, cheio de liberdades,
de abundância... Ela erguia o dedo no ar: “Uma TV na sala, e uma no quarto de
cada filho! Somos ou não somos um país democrático?!” E olha que naquela época a gente já
questionava os limites da Internet discada e a existência-ou-não da mítica Deep
Web.
Dona Fiorina era uma democrata radical, em termos de
liberdade de expressão. Todo brasileiro (“até os índios,” dizia ela, “porque
eles não têm culpa de estarem aqui quando nós chegamos”) tinha direito de
assistir o Jornal Nacional – e o Jornal do SBT. “É preciso ouvir os dois lados
de cada questão,” sentenciava ela, alisando a manta sobre os joelhos. Eu
perguntava pela Band, pela TV-Rio, pela TV Manchete e outros dinossauros
daquela época., Ela abanava a cabeça, incrédula: “Só existem dois lados do
muro. Ou a pessoa está conosco, ou está com Eles.” E ficava coquete e irresistível, em seus
80-e-bote-força, quando piscava o olho para mim, sorrindo: “Não me pergunte de
que lado do muro eu estou. Eu estou do lado da vida!!”
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