(Ilustração: Richard Powers)
Em
princípio são duas coisas que não têm nada a ver.
O Surrealismo gerou os
estilos (ou propostas de novos estilos) mais excêntricos de sua época e de
muitas outras, ao passo que a ficção científica, embora imaginativa em termos
de enredos, sempre tendeu a uma narrativa tradicional, mimética, com uma
sintaxe estruturalmente conservadora (ou seja, com começo, meio e fim, nesta
ordem).
Difícil conciliá-las: a doutrina da escrita de-pernas-para-o-ar (sem
pensar, sem refletir, drenando sua energia do sonho, do delírio, do trauma) e a
literatura da imaginação cartesiana, capaz de conceber e ilustrar uma teoria
original do universo e ter personagens com que um leitor médio consegue se
identificar.
Creio
que vale o mesmo que dizemos sobre surrealismo e cinema. Uma coisa é praticar
escrita automática; qualquer um pode pegar uma caneta, fechar os olhos, e
despejar ali o que lhe passa na cabeça. Outra coisa é tentar fazer isso
enquanto tem que dirigir uma equipe de cem pessoas, tomar decisões logísticas,
financeiras e estéticas das seis da manhã à meia-noite, berrar em megafones,
suportar bombardeios da imprensa. Será
possível um surrealismo aplicado a uma profissão tão administrativa quanto
“diretor de cinema”?
Buñuel,
Lynch e outros parecem ter um procedimento básico que a FC pode adotar. O Surrealismo, no que tem de liberação inconsciente e não-programada, ocorre em
duas instâncias: na concepção original, geralmente o argumento, que pode ser
tão surrealista quanto o de Um cão andaluz; e na possibilidade de improvisar,
fazer mudanças de surpresa, imprevistas, no momento mesmo da execução.
Buñuel
tinha essas venetas, que produziam algumas de suas imagens mais
desconcertantes.
Outros
autores ficam mais próximos do surrealismo pela heterogeneidade cultural entre
seus ambientes e personagens, como Cordwainer Smith.
Outros pela imaginação
desenfreada e sem precisar dar explicações, como muitos autores de pulp
fiction.
Outros por vasculhar do lado negro da ciência e o lado tenebroso do
ser humano, como J. G. Ballard e William Burroughs.
A imprevisibilidade e o jogo de choque desencadeado pelo acaso ou
por processos artificiais (neste ponto a Oulipo herdou algo do surrealismo) é
um recurso tecnicamente modernista que a FC pode aplicar com lucro nos seus
formatos clássicos e no seu banco-de-dados imaginativo.
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