sábado, 24 de maio de 2014

3507) FC e Surrealismo (24.5.2014)



(Ilustração: Richard Powers)

Em princípio são duas coisas que não têm nada a ver. 

O Surrealismo gerou os estilos (ou propostas de novos estilos) mais excêntricos de sua época e de muitas outras, ao passo que a ficção científica, embora imaginativa em termos de enredos, sempre tendeu a uma narrativa tradicional, mimética, com uma sintaxe estruturalmente conservadora (ou seja, com começo, meio e fim, nesta ordem). 

Difícil conciliá-las: a doutrina da escrita de-pernas-para-o-ar (sem pensar, sem refletir, drenando sua energia do sonho, do delírio, do trauma) e a literatura da imaginação cartesiana, capaz de conceber e ilustrar uma teoria original do universo e ter personagens com que um leitor médio consegue se identificar.

Creio que vale o mesmo que dizemos sobre surrealismo e cinema. Uma coisa é praticar escrita automática; qualquer um pode pegar uma caneta, fechar os olhos, e despejar ali o que lhe passa na cabeça. Outra coisa é tentar fazer isso enquanto tem que dirigir uma equipe de cem pessoas, tomar decisões logísticas, financeiras e estéticas das seis da manhã à meia-noite, berrar em megafones, suportar bombardeios da imprensa.  Será possível um surrealismo aplicado a uma profissão tão administrativa quanto “diretor de cinema”?

Buñuel, Lynch e outros parecem ter um procedimento básico que a FC pode adotar. O Surrealismo, no que tem de liberação inconsciente e não-programada, ocorre em duas instâncias: na concepção original, geralmente o argumento, que pode ser tão surrealista quanto o de Um cão andaluz; e na possibilidade de improvisar, fazer mudanças de surpresa, imprevistas, no momento mesmo da execução. 

Buñuel tinha essas venetas, que produziam algumas de suas imagens mais desconcertantes.

O espírito do surrealismo está presente, por exemplo, em Philip K. Dick, e digo espírito porque não me consta que Dick fosse fã de Breton e companhia. Dentro das suas obsessões recorrentes, a narrativa de Dick era muito movida pelos ventos da veneta, do repente, da cena ou personagem caídos do céu. 

Outros autores ficam mais próximos do surrealismo pela heterogeneidade cultural entre seus ambientes e personagens, como Cordwainer Smith. 

Outros pela imaginação desenfreada e sem precisar dar explicações, como muitos autores de pulp fiction. 

Outros por vasculhar do lado negro da ciência e o lado tenebroso do ser humano, como J. G. Ballard e William Burroughs.  

A imprevisibilidade e o jogo de choque desencadeado pelo acaso ou por processos artificiais (neste ponto a Oulipo herdou algo do surrealismo) é um recurso tecnicamente modernista que a FC pode aplicar com lucro nos seus formatos clássicos e no seu banco-de-dados imaginativo.




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