domingo, 27 de junho de 2010

2197) A história de César (24.3.2010)



César (usarei este nome, que não é o dele) estudou comigo no Ginásio, numa turma em que vim parar por esses remanejamentos escolares que nos jogavam, às vezes, no meio de um grupo de outros quarenta adolescentes que nunca víramos mais gordos. Fazer amizades era um processo relativamente rápido, pois nos primeiros dias de aula já se desenhavam os grupos que as marés das afinidades amontoavam em torno de um centro gravitacional comum: aqui os Comportados, ali os Palhaços, lá adiante os Brigões, e os Estudiosos, os Riquinhos, os Proletas, os De Família, os Amulherados, os Líderes, os Babões...

Vi logo que César pertencia aos Palhaços (era sempre o primeiro a desferir uma graça-sem-graça lá do fundo da sala, durante as explicações das professoras tímidas), aos Brigões (brandia o dedo no nariz de quem se opusesse a ele e chamava pra brigar na saída), aos Proletas (falava errado, a farda era toda cerzida, às vezes tentava tomar o lanche de alguém porque não podia pagar). Fazia de tudo para aparecer; sua vida era um chega-pra-lá permanente para afirmar seu próprio espaço. Era magro, rosto cheio de espinhas, branquelo igual a mim. Tinha uma voz estridente, forçada, e costumava entrar na sala gritando: “Eita calor fela da p... que faz nessa p... desse colégio!” – e dava um chute na primeira carteira que estivesse à sua frente, surdo às reclamações do “inquilino”.

De vez em quando ia às tapas com um ou outro. Por mais de uma vez me ameaçou por uma bobagem qualquer. Como eu falava pouco (viera de outra turma, não tinha nenhum amigo antigo ali), me chamava “o Recalcado”. Quando comecei a tirar notas boas em algumas matérias, parou de me insultar, não por respeito, mas para nos dias de prova sentar perto de mim e ficar pedindo cola – que eu fornecia, quando não corria risco de ser pêgo. Vi-o brigar algumas vezes no recreio. Era cruel mas desorganizado; brigava mal, mas fazia um tal alarido que suas brigas eram logo encerradas pela intervenção de alguém. Voltava das suspensões como se nada tivesse acontecido, gritando impropérios e chutando as carteiras.

Um dia estávamos no pátio conversando com uns caras de outras turmas. César estava com a corda toda, sarcástico, incômodo. Um dos sujeitos cruzou os braços e desferiu esta: “Engraçado, César agora é todo metido a homem, no ano passado era todo mariquinha: quando apanhava choraaaava...” Durou só um segundo; mas vi que ele vacilou, bambeou, meio que acusando o golpe; por alguns segundos seus olhos de cascavel transpareceram um medo sem nome, um susto sem fim. Vi ali o pavor de quem era fraco no bom sentido, de quem era medroso no bom sentido, de quem na verdade gostaria de ser algo diferente do que foi no ano passado e do que está sendo agora, mas nunca achou o caminho. Logo logo César bradou um palavrão e armou uma escaramuça. Continuou o mesmo, mas naquele instante eu aprendi alguma coisa que não sei bem o que foi, estou dizendo aqui para ver se alguém sabe.

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