domingo, 27 de junho de 2010
2196) “We can build you” (23.3.2010)
É um romance menor na obra de Philip K. Dick, mas, como tudo que Dick escreveu, é uma obra em que estão visíveis todas as qualidades do autor. Dick se colocava por inteiro em tudo que escrevia, e cada obra sua é um registro de suas obsessões, suas inquietações éticas e filosóficas, seu humor torto e surpreendente. Este livro foi escrito (de acordo com Lawrence Sutin em sua biografia Divine Invasions) entre 1961 e 1962, embora tenha sido publicado aos pedaços em revistas e a primeira edição em livro seja de 1972. É a história de uma fábrica de órgãos musicais eletrônicos que consegue produzir os primeiros andróides capazes de ser confundidos com seres humanos. Os andróides são feitos à imagem de Abraham Lincoln e de seu secretário de governo Edwin Stanton. (Dick havia visto e ficado fascinado com um “Lincoln” mecânico na Disneylândia, e 1961 marcou o centenário da Guerra da Secessão, um subtema do livro.) Os primeiros dois terços do livro mostram a criação dos andróides, o modo como eles se relacionam com os humanos, e a disputa entre duas empresas que querem usá-los para diferentes fins.
No terço final do livro, a história dá uma curiosa guinada. O narrador, Louis Rosen, um dos sócios da fábrica de andróides, se apaixona por Pris, a filha do seu sócio Maury Rock. Pris é esquizofrênica, e tendo recebido alta de uma clínica psiquiátrica dedica-se ao trabalho artístico da criação dos andróides. Louis a vê alternadamente como uma mulher fascinante e como uma destruidora. Nesta parte final, os andróides recuam para segundo plano, e acompanhamos apenas a descida aos infernos de Louis Rosen, que, apaixonado por uma mulher esquizóide, torna-se esquizóide ele próprio.
Dick foi o escritor de FC que melhor soube criar personagens comuns, geralmente pequenos industriais ou comerciantes, vendedores, sujeitos de bom caráter mas consumidos por dúvidas existenciais e problemas filosóficos. Indivíduos que se deparam com situações fantásticas em que precisam redefinir seus conceitos sobre o que é real, o que é um ser humano, o que é a vida, a morte, o Universo. We Can Build You ressuscita um Abraham Lincoln compassivo, ético, depressivo (o livro comenta as crises esquizóides que Lincoln teve na juventude) como contraponto a Louis Rosen.
Brian Stableford observa que muitos livros de Dick não se encerram, se esvaem, terminando de forma abrupta ou vaga, sem resolver as situações dramáticas que propõem. E sugere que isso se deve ao modo de produção do autor, que consistia em acessos de hiperatividade criativa em que escrevia dias e noites sem parar. Quando esses acessos eram curtos, o livro adquiria essa estrutura desconjuntada, inconclusa. O que não tem muita importância, pois a obra de Dick é uma espécie de ficcionalização permanente de seu próprio cotidiano, de suas fantasias e alucinações. Mesmo um livro menor, como este, é capaz de inquietar um novo leitor, fasciná-lo, conquistá-lo para sempre.
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