sexta-feira, 25 de junho de 2010
2194) Poe e o efeito (20.3.2010)
Estou preparando uma antologia sobre os contos obscuros de Edgar Allan Poe (1809-1849), um dos escritores que mais influenciaram a literatura de hoje. Basta pensar que três dos gêneros mais populares do mercado em 2010 têm Poe como precursor: o romance policial, a ficção científica e a história de terror.
Pela complexidade de sua obra, e pelo modo como nela estão presentes elementos culturais que só hoje começam a se disseminar pelas sociedades tecnológicas, podemos dizer que Poe, nascido há 201 anos, foi o primeiro escritor a praticar a literatura do século 21.
Há um outro aspecto em que a influência de Poe foi extremamente positiva em sua época, mas tornou-se tão forte, e tão adequada ao Espírito do Tempo, que hoje passa a ser uma distorção e uma ameaça.
Ocorre isto com o espírito de racionalidade e deliberação que Poe imprimiu à poesia e ao conto, onde tudo, aos seus olhos, devia ser organizado não em função de uma suposta “mensagem” ideológica (este seria o objetivo do Ensaio) ou da criação da Beleza (este seria o objetivo da poesia).
No conto, dizia Poe, tudo deve ter em mente o efeito a ser produzido no leitor. Isso foi uma verdadeira puxada de tapete numa época em que se pressupunha que o objetivo da literatura era exprimir o que se passa na mente do autor, e que cabia ao leitor o esforço de entender.
O centro era o Autor. Poe deslocou esse centro: o centro é o Leitor, a mente do Leitor, e cabe ao autor organizar os seus recursos (enredo, personagens, efeitos estilísticos, etc.) para produzir no Leitor um efeito previamente escolhido.
Ora, isso que Poe propõe é exatamente o que faz, em escala maciça e massacrante, a indústria cultura de hoje, o cinema, a TV, a literatura popular em geral. Pesquisas de mercado passam o pente fino no gosto do público, listam os elementos mais preferidos e menos preferidos, organizam esses elementos de forma a criar um produto “customizado”, talhado na medida exata para atender a expectativa do freguês.
Dizem os americanos que qualquer filme que tenha crianças, cachorros e esporte é sucesso garantido.
Este excesso de deliberação e planejamento chega quase a um cinismo. A indústria cultural não trabalha com o conceito de Autor, de um indivíduo que centraliza a criação e a utiliza para exprimir sua própria visão do mundo, suas emoções, o que lhe vai pela alma.
A própria literatura está se aproximando dessa visão mercadológica em que o escritor primeiro pesquisa “o que o público está gostando” e só depois escolhe o assunto do seu livro e se senta para escrever. Claro que a literatura de autor, o cinema de autor e até mesmo a televisão de autor ainda existem. Isso não se extingue por decreto nem por ibope.
Mas a literatura, influenciada pela mudança de enfoque sugerida por Poe há quase dois séculos, tende cada vez mais a ser um produto pesquisado, planejado, cuidadosamente produzido para produzir os efeitos X ou Y no onipresente e impotente Leitor.
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