quinta-feira, 24 de junho de 2010

2183) Voz de cabeça raspada (7.3.2010)



Em 1968, Caetano Veloso defendeu num festival, sob vaias, a música “É Proibido Proibir”, vestindo roupas de plástico, acompanhado por guitarras e toda a parafernália tropicalista. Um dos elementos de choque usado por ele era a invasão do palco por John Danduran, “um gringo evidente, alto, muito branco, envolto num poncho hippie, sem um fio de cabelo em todo o corpo” (Verdade Tropical, p. 301).

Passou-se. Alguns anos atrás, Caetano, entrevistado no programa de Jô Soares, referiu-se a essa época, e Jô perguntou pelo gringo – quem era ele, por onde andava, etc. Caetano respondeu que depois dessa época John tinha retornado para os EUA, e completou: “Aliás, na minha última turnê pelos EUA conversei com ele, lembramos os velhos tempos, etc.” Jô perguntou: “É mesmo? E ele ainda continua com a cabeça raspada?” Caetano: “Sim, continua”. Jô: “Vocês se encontraram onde?” Caetano: “Na verdade não nos encontramos, ele telefonou para o hotel em que eu estava e batemos um papo”. Jô: “Se foi assim, como você sabe que ele estava com a cabeça raspada?” E Caetano: “Olha, Jô, não sei... mas ele estava com uma voz-de-cabeça-raspada danada!” A platéia morreu de rir e aplaudiu com entusiasmo.

A história acaba aí; vamos à análise. O que a motiva é o fato de que eu, pessoalmente, também gargalhei, e também tive vontade de aplaudir a resposta. E não foi por tietagem com Caetano. Se isso tivesse surgido num diálogo entre Sílvio Santos e Wando, eu aplaudiria do mesmo modo. Achei uma resposta excelente; por quê? Porque é puramente literária, não no sentido de linguagem elaborada, cheia de retórica. Literária no sentido de ser (lápis e papel na mão, por favor) “um uso inesperado e criativo da linguagem como resposta emotiva a uma situação psicologicamente instável”. No caso, para uma função de auto-ironia e auto-afirmação, por mais que as duas pareçam contraditórias.

Caetano percebeu que tinha dito uma coisa infundada, pois num mero telefonema não poderia saber se o cara estava de cabeça raspada ou não. Questionado, ele podia admitir o erro de maneira pedestre, normal: “Ih, pois é, foi mal, me equivoquei...”. Mas ele insistiu no erro através de uma afirmativa absurda (e imageticamente criativa). Foi uma saída auto-irônica (“vejam só a doidice que estou dizendo só para não dar o braço a torcer!”) e auto-afirmativa (“vejam só como eu não entrego os pontos”). O público gargalhou e aplaudiu porque a imagem absurda produzida foi a vitória da imaginação, um gesto puramente emotivo (de auto-defesa verbal) sem o menor apelo à razão ou à lógica. Uma volta-por-cima depois do tombo. Gestos assim fazem parte de nossos diálogos em bar, colégio, praia, reunião de amigos, papo de escritório, mesa de almoço. Surgem onde quer que alguém invente uma maluquice inesperada para reconhecer um erro reafirmando-o “ad absurdum”, o que é literariamente mais satisfatório do que meramente admitir que errou.

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