segunda-feira, 29 de março de 2010

1845) A cultura como interface (6.2.2009)




Ligo meu computador e durante vários segundos se sucedem uns códigos indecifráveis, letras brancas sobre fundo preto, tabelas, fichas técnicas repletas de códigos e de números. Então há uma espécie de recomeço e brota na tela a confortável e acolhedora paisagem do Windows XP, aquele céu azul e as verdes colinas que depois de alguns anos acabam se tornando uma espécie de Pátria, de terra natal. 

“Pronto!”, murmura o usuário, “estou em casa”. Por isso mesmo os teclados e menus nos fornecem a palavra “Home”. Só faltam botar “Home, sweet home”.

Essas imagens existem? Essas colinas do Windows, esses peixinhos-de-aquário que me servem de descanso de tela, esses quadros abstracionistas que escolhi, com um clique, para ser meu papel de parede? Poderei dizer que esta página onde escrevo agora existe, é real, é palpável? 

Estou vendo agora uma página branca com letras pretas, em Time New Roman, tamanho 12 (a que uso como padrão para estas colunas). Nada disso existe. São instruções matemáticas do programa. 

Quando abro o Word, o programa determina que pontos luminosos brancos apareçam na tela, emoldurados por pontos, traços e formas de diferentes cores que compõem as molduras. A barra de ferramentas e os menus desta página são ficções visuais. Desligado o computador, os pontos de luz se apagam, e só voltam a existir de novo quando o programa ordena que reapareçam.

É isto que chamamos interface gráfica. Foi criada para que não tenhamos que dar instruções ao computador. Os computadores mais antigos eram todos movidos a instruções. Era preciso dialogar com eles o tempo todo. Faça isto, agora faça aquilo. 

A interface gráfica surgiu para esconder o fato de que estamos dando instruções, e para imitar o ambiente, os objetos e os gestos de nossa vida física. Clicamos, arrastamos, copiamos & colamos, abrimos e fechamos janelas e menus. E quando apontamos o dedinho do cursor num link e clicamos, estamos autorizando o computador a dar o comando correspondente à ação que queremos.

Assim também é nossa cultura. Criamos, para nossa mútua proteção, uma super-estrutura de cidades, civilizações, códigos, princípios, arte, religião, conceitos de política e economia. 

Tudo para não ter que pensar na infraestrutura, nos comandos rudes e toscos, em tela preta, que determinam nossa vida: o funcionamento dos nossos órgãos, o funcionamento do planeta que habitamos. 

Os processos físicos e químicos que me mantêm vivo, e que ignoro solenemente; e os processos que mantêm o planeta habitável para nossa espécie, e que também ignoramos. 

A cultura é uma interface gráfica cheia de prioridades em tecnicolor: o trabalho, o lazer, a família, a diversão, a vida espiritual. Mas toda ela repousa numa infraestrutura invisível de processos, cuja existência só percebemos quando alguma coisa começa a dar errado e vamos parar na UTI, reduzidos ao conflito binário fundamental entre continuar existindo ou parar de existir.




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