quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

1709) Machado: “A Segunda Vida” (3.9.2008)



O leitor deve conhecer o poema intitulado “Instantes”, que circula na Internet atribuído ao indefeso Jorge Luís Borges, e que os Titãs acabaram glosando numa canção de sucesso (“Epitáfio”, de Sérgio Brito). O poema diz coisas tipo “ah, se eu nascesse de novo aproveitaria melhor a vida, contemplaria mais crepúsculos, andaria descalço na grama, teria mais problemas reais e menos problemas imaginários...” O tema é interessante, as idéias são louváveis, mas literariamente o poema é só glicose e violinos.

Disse que o tema é interessante, e reitero. Penso no filme Feitiço do Tempo (“Groundhog Day”), de Harold Ramis, em que um apresentador de TV vivido por Bill Murray tem a chance de repetir indefinidamente um único dia de sua vida, até aprender a deixar de ser um mau caráter, e ganhar como prêmio os olhos, lábios e cabelos de Andie MacDowell. Penso no livro Replay de Ken Grimwood (1987), onde o protagonista, ao morrer, vê-se catapultado de volta aos seus 18 anos e percebe que irá reviver toda sua vida dali em diante, só que lembrando-se de tudo que lhe sucedeu, e podendo (ou não) valer-se dessas memórias para viver de maneira melhor a própria vida.

Munido dessas informações, minha reação seria diferente da reação do Monsenhor Caldas, no conto “A Segunda Vida” (Histórias sem Data, 1884), que, ao ver seu visitante dizer-lhe que morreu e está vivendo de novo a própria vida, chama de lado o escravo e pede-lhe à socapa que traga a polícia, pois está com um doido em casa. O doido, se de fato o for, é José Maria. Explica ao clérigo que cada milésima alma que chega ao céu ganha como prêmio a reencarnação, no papel que escolher. Ele pediu apenas que lhe fosse dado manter a memória e a experiência.

José Maria renasce e tem uma infância medrosa, sem quedas, sem doenças, sem cabeças quebradas, sem brigas e sem graça. Adulto, não namora porque tem medo de ser traído; casado, não tem filhos por temer que adoeçam e morram. E por aí vai. O conto se encerra da mesma maneira brusca como começou. Exaltado, ele investe contra o monsenhor, no mesmo instante em que “pela escada acima ouvia-se um rumor de espadas e de pés”.

Como em praticamente todas as narrativas fantásticas de Machado, o fantástico é emoldurado pela mente de um personagem: ora é um narrador que adormece e sonha, ora é um doido que se ergue e fala. José Maria parece doido, e sua doidice, como diria Chesterton, era a do excesso de razão: “a experiência dera-lhe o terror de ser empulhado”. A segunda vida sai-lhe necessariamente mais pobre do que a primeira, porque ele tem como regra maior não correr riscos. Dada a atual popularidade do poema “de Borges” e do “Epitáfio” dos Titãs, o conto de Machado é de uma ironia devastadora. É a história do cara que tem justamente a vida boa, cheia de riscos e de aventuras, mas, ao ser-lhe dada a chance de viver tudo de novo, opta pela vida medrosa, contida, “cautelosa pouco a pouco”. Matéria a meditar.

3 comentários:

Unknown disse...

Monsenhor Caldas desfazia-se em sorrisos e assentimentos de cabeça, espantava-se com ele, alegrava-se com ele, política útil com os loucos, as mulheres e os potentados. Sensacional, brilhante, como sempre, seu blog.
um abraço, João Pimentel.

Braulio Tavares disse...

Machado é machado, o resto é canivete. :-)

Vinicius A. Amaral disse...

Grande Bráulio! Até nos trocadilhos dá um show! rs