quarta-feira, 5 de agosto de 2009

1173) Os rituais da Ciência (16.12.2006)



Mesmo na atividade científica, que deveria ser a mais racional de todas, existe uma alta dose de irracionalismo sob a forma de rituais burocraticamente obedecidos, repetição de processos cuja origem ninguém lembra e cuja função ninguém conseguiria explicar, caso alguém perguntasse. Na prática de laboratório, por exemplo, sobrevivem traços que nos fazem lembrar o material arcaico do folclore, das superstições, das oferendas agrícolas. Quando uma técnica é criada, mostra-se eficaz, e se consolida, ela muitas vezes se transforma num “pacote” de etapas sucessivas que é cegamente passado adiante. Às vezes, o mundo muda, as circunstâncias mudam, mas o ritual se mantém intacto, não sofre revisões. As pessoas aprendem o processo sem perguntar o “por que” de cada detalhe. Anos depois, passam o pacote adiante para seus alunos ou seus assistentes.

Na sua deliciosa e instrutiva antologia A Literary Companion to Science (Norton, Londres & New York, 1989), Walter Gratzer cita dois exemplos extraídos do livro de Primo Levi A Tabela Periódica. Diz Levi que viu num livro antigo uma recomendação para que, durante a fervura do óleo de linhaça, fossem colocadas na fervura duas rodelas de cebola, sem explicar para quê. Depois de muito pesquisar e indagar, ele obteve de um mestre já idoso a explicação. Muitos anos atrás, não se usavam termômetros durante a fervura do óleo. O “ponto” certo de interrompê-la era determinado pela introdução das rodelas de cebola. Quando elas começavam a fritar, estava na hora de parar a fervura do óleo. O tempo passou, os equipamentos foram modernizados, e a cebola foi ficando – sem ninguém lembrar por quê.

O outro exemplo diz respeito ao verniz de copal, que os britânicos importavam de Madagascar, Congo, Serra Leoa. Era uma resina vegetal fóssil, duríssima, e tinha de ser fervida até derreter e chegar ao ponto certo de produzir o verniz (que, aplicado na indústria de calçados, valia uma fortuna). Por tentativa e erro descobriu-se (com pesagens sucessivas durante a fervura) que o “ponto” era quando a resina tinha perdido 16% de seu peso. Isto virou uma norma. Por volta de 1940, a resina foi substituída por outros preparados químicos que custavam menos, eram mais fáceis de produzir e davam o mesmo efeito. Mas até 1953 se manteve o hábito de fazer estas novas resinas perderem 16% do seu peso inicial durante a fervura, coisa agora totalmente desnecessária!

Já sei que o pessoal meio artista, que gosta de criticar o bitolamento da mente científica, vai ver nisto uma prova do quanto a Ciência é limitada. Ledo engano, camaradas. Erros deste tipo não ocorrem com quem é excessivamente científico, mas com que o é pouco. Com quem não questiona práticas tradicionais. Com quem não pergunta o “por quê” quando está aprendendo uma técnica. Com quem comete o pior pecado de um cientista: aceitar algo sem examinar, sem pôr à prova, sem fazer passar pelo Teste da Experiência.

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